sábado, 30 de janeiro de 2016

Primeiro Grupo da Frelimo que recebeu Treino Militar na Argélia (Janeiro - Julho de 1963)

Por 
Eusébio A. P. Gwembe

O regime colonial tinha identificado alguns homens tidos como «entusiastas da guerra»: Uria T. Simango, Marcelino dos Santos, Leo Milas e Filipe Magaia. Foram estes que se esforçaram a incutir nos restantes nacionalistas a ideia de uma luta armada. Há informações de que antes da primeira leva, pequenos grupos iam para diversos países onde faziam treinos militares, sem causar alarme para o regime colonial, embora soubesse destas movimentações. «Todavia, quando a seguir a partida para o Cairo de um dos últimos pequenos grupos (Dezembro de 1962), se anunciou a futura ida de contingentes em massa, convenceram-se muitos de que afinal se não tratava já de brincadeiras, para alimentar o fogo sagrado da propaganda e da política, mas sim de coisa a sério». A Constituição do Primeiro Grupo da Frelimo que recebeu Treino Militar na Argélia (Janeiro - Julho de 1963) era composta por 50 indivíduos dos quais 37 (74%) instruendos de Cabo Delgado; 7 (14%) de Gaza, 3 (6%) de Sofala e igual número de Maputo. Entre eles estavam agentes que serviam de «olho do Governo do Tanganhica» que, por sua vez e de forma indirecta, «era olho da PIDE». A prova, é a lista em anexo cujo remetente afirmou que «Depois de regressar continuei a receber o que estava a ser pago pelo Governo do Tanganyika, antes da minha ida a Argélia. Aqueles que, como eu, tinham família, o pagamento nunca foi suspenso durante a ausência para treinos».
O grupo para treino militar foi preparado por João Munguambe, ajudado por Leo Millas, Lourenço Mutaca, Filipe Samuel Magaia e Silvério Nungu. Para o efeito, João Munguambe chamava cada um ou em grupo dos que tinham sido previamente seleccionados para comunicá-los. Os que não concordaram, debandaram para casa de familiares ou de amigos; outros regressaram à terra. O primeiro grupo saiu de Dar-es-Salaam no dia 13 de Janeiro com destino a Nairobi, via terrestre, com paragens em Morogoro e Moshi para refeições. Em Nairobi foram conduzidos ao aeroporto e num jacto da United Arab Airlines seguiram para Argel com escala em Cairo e Tripoli. Chegaram no dia 16 a Argel. Leo Millas e Filipe Magaia que auxiliará na instrução do grupo de que era chefe os acompanhavam.  Foram alojados em duas camaratas num quartel e receberam sapatilhas, camisolas, um par de cuecas, um par de meias, dois fardamentos e uma camisa. De autocarro seguiram para o quartel da cidade de Oran onde receberam dois sabonetes, cobertores, cinturão, cinto, cartucheiras, mochila, cesto, pano de tenda individual. Depois, seguiram para o Quartel de Mornia, na fronteira com Marrocos. O treino foi intensivo, com exercícios práticos e aulas teóricas, técnicas e de aprendizagem de Francês. Na primeira semana praticaram os exercícios físicos; judo, corrida, saltos, transposição de barreiras e obstáculos, football que prosseguiram a intervalos durante toda a formação. A segunda semana incluiu exercícios de natação para todos; nomenclatura, mecânica e manejo de espingardas; para a terceira semana entraram com os exercícios de tiro, a alvos distanciados de 50 a 300 metros, em progressão de 50 em 50 metros, e prostrados na linha de tiro, em grupos de seis atiradores ao mesmo tempo. E foram sendo introduzidas novas aprendizagens, acompanhadas de revisões. Havia uma grande variedade de engenhos e armas, ligeiras e pesadas, não automáticas, automáticas e semi-automáticas. O programa do treino era de dois períodos diários; das 8 às 12 e das 14 às 17, excepto aos domingos que era dia livre. 
Na preparação para a sabotagem era recomendada a poupança, sempre que possível, das infra-estruturas, porque se tratava de bens materiais necessários na paz, quando ganha a guerra e obtida a independência. Por isso, o objectivo primeiro era a caça ao homem, a destruição sistemática dos seus veículos de transporte. Os conhecimentos dos instruendos em francês não estavam a altura do treino. Era Filipe Magaia que traduzia em Português aos chefes de grupos; estes transmitiam-na, de seguida, em Português aos chefes de peça e de equipa que, por sua vez, ou em Português ou em língua nativa (suahili ou maconde), a transmitiam aos instruendos. Foram seis meses de treino sob orientação de capitão, sargento  e ajudantes argelinos. Dos  50 instruendos, foi retido um grupo dos primeiros quinze da lista abaixo, a fim de se especializar em transmissões e muito especialmente em rádio-comunicações. Numa entrevista conduzida por OLÍVIA MASSANGOFeliciano Gundana, o 4º na lista, explicou outras razões nestes termos: Eu havia estado na Argélia, nos treinos militares, fui no primeiro grupo. Os treinos começaram em Janeiro e terminaram em Maio. Eu acabei por ficar lá, com o camarada Milagre Mabote, para recebermos os outros grupos. Ficámos lá mais um ano e só regressámos em 1964. fiquei na Argélia e participei no treinamento dos outros dois grupos que estiveram lá, como um dos intérpretes de francês para português, porque o treino era dado em francês. Eu viajei com Filipe Samuel Magaia da Beira até Dar-es-salaam. Estive com ele na Argélia, era o chefe do primeiro grupo, e, mais tarde, quando voltei a Dar-es-salaam, trabalhei com ele no Departamento da Segurança e Defesa» Jornal O País, 24 ABRIL 2012.
Os 35 seguiram para o aeroporto, aonde tomaram o avião «Comet» da East African Airways, fretado pela Frelimo e que fez percurso Argel-Nairobi na noite de 14 para 15 de Julho de 1963. Este mesmo avião no percurso de regresso conduziu o segundo grupo da Frelimo que foi treinar na Argélia, composto de 70 indivíduos (na realidade 68) que não teve contacto com os do primeiro grupo.
Eis a lista completa do grupo:

Constituição do Primeiro Grupo da Frelimo que recebeu Treino na Argélia (Janeiro - Julho de 1963)
Nome
Proveniência
1
Albino Estevão Anapyaila
Cabo Delgado
2
Albino Tomas Macavaca
Cabo Delgado
3
Bartolomeu Carlos Mbalica
Cabo Delgado
4
Feliciano Gundana
Sofala
5
Jacinto Sithole
Sofala
6
Jonas Rodrigues Chale
Gaza
7
João Eugênio Mchocho Ncuemba
Cabo Delgado
8
Ludovico Gaspar Tukawula
Cabo Delgado
9
Luis Anastácio Nobre Chilambo
Cabo Delgado
10
Lourenço Matola
Maputo
11
Mário Fernando Navilani
Cabo Delgado
12
Miguel Niquenti Sakoma
Cabo Delgado
13
Milagre Mabote
Gaza
14
Pedro Joaquim Sibindi
Sofala
15
Rafael José Pedro Mwakala
Cabo Delgado
16
Ali Juma
Cabo Delgado
17
Andre Mputa Walikalala Kulomba
Cabo Delgado
18
Antonio Chalalangasi Chapasa
Cabo Delgado
19
Baculu Simoni
Cabo Delgado
20
Bombarda Tembe
Maputo
21
Cartase Caetano Cumaco
Cabo Delgado
22
Cassiano Alato Nchawya
Cabo Delgado
23
Cristiano Pavão Damião Kunanengo
Cabo Delgado
24
Cristovão Tiago Mula
Cabo Delgado
25
Fernando Vasconcelos Mucavele
Gaza
26
Francisco Ludovico
Cabo Delgado
27
Frederico Antonio Almeida
Cabo Delgado
28
Gabriel Simeão Zandamela
Gaza
29
Hamisi Mohamed Ali
Cabo Delgado
30
Henrique Mandlati
Gaza
31
Hilario Candido Nekamwene Kwalembo
Cabo Delgado
32
Ibrahimi Abdullah
Maputo
33
Ibrahim Bakali
Cabo Delgado
34
Jameson Said
Cabo Delgado
35
João Alexandre Madunga
Cabo Delgado
36
José Covane
Gaza
37
José Frenando Napulula
Cabo Delgado
38
Jose Kaindi Jacob
Cabo Delgado
39
Lucas Elias Tiago
Cabo Delgado
40
Luis Assiam Cassiano
Cabo Delgado
41
Manuel Nagogo
Cabo Delgado
42
Mateus Chipanda Mtabuliwa
Cabo Delgado
43
Mulia Cristovão
Cabo Delgado
44
Omari Sultan Maulana
Cabo Delgado
45
Oreste Basilio Kalulu
Cabo Delgado
46
Oreste Juliao Nandanga Changala
Cabo Delgado
47
Tadeo Pascoal Muidumbe
Cabo Delgado
48
Valentino Mtumwa Sakusasa
Cabo Delgado
49
Vasco Musketo Matabele
Gaza
50
Zacarias Halawe Twalibu
Cabo Delgado

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Guebuza, um grande estadista que colocou a Renamo no seu lugar

Por vezes a História faz o homem, em vez de o homem fazer a História.  Quando os meus netos me perguntarem quem foi Guebuza terei muitas coisas para dizer. Para começar, todos os videntes da época falharam perscrutar os seus planos. Numa dessas vezes, tinham dito que ele não havia de deixar a presidência. Outras vezes diziam que ele queria acabar com os partidos da oposição, e até de dividir o próprio partido, enfim, muito sonambulismo.

Guebuza foi o eminente e humanitário homem de Estado, que consagrara toda a sua vida e toda a sua alma à causa da emancipação dos moçambicanos para confiarem nas próprias forças. Foi o terceiro presidente deste belo país. Vi-o inúmeras vezes e diferentes locais, mas o momento marcante foi aquele em que ele dava por terminada tão formosa como altruísta missão de dirigir os destinos deste país quando observou que "não é a alternância em si que dá vitalidade à democracia, é, isso sim, a sua possibilidade" reconhecendo que adversários da Frelimo "batalham, dia e noite para que o seu sonho seja materializado", mas que os membros da Frelimo deviam trabalhar "sempre unidos, coesos e firmes, para que esse seu sonho se transforme em pesadelo". Fazia inaugurações e despedia-se do povo que governara por uma década. A abolição da política de mão estendida em que foi mais uma vez o primeiro percursor, representou sem dúvida para nós o cumprimento dum dever de humanidade e a consequência lógica da política guebuziana e de que nos orgulhamos e voz orgulhareis por longos anos como dum brasão de família. Foi Guebuza que transformou milhões de homens moçambicanos em milhões de cidadãos moçambicanos. Alguns dos pais dos vossos amigos abriram olhos de criticar o Governo nessa época, coisa que era impensável, 23 anos antes.


E fi-lo sem hesitação, decidido a levar essa obra até às suas últimas consequências, a completá-la definitivamente, atraindo os seus críticos a uma civilização mais adiantada, aproximando-se deles com solicitude , respondendo-lhes as provocações e ferindo-lhes a imaginação e os sentidos com os exemplos mais impressionantes do que o homem pode conseguir com o seu trabalho e energia, ensinando-lhes, como se ensina a uma criança, o uso que devia fazer das forças e faculdades de que dispõem para sair da pobreza. De tempos a tempos alertava aos seus críticos, mas estes nem sempre se davam conta. Usava linguagem poética para criticar os seus críticos que muitas vezes não suportavam o peso dos adjectivos. Ah, netinhos, como é bom recordar os murmúrios dos apóstolos da desgraça daquele tempo; os tagarelas; os saudosistas; os intriguistas. Os tínhamos aos montes; uma espécie de homens, hoje da minha idade, que viam tudo o que provinha do Governo como errado.


Guebuza, cuja obra se impõe como um exemplo e merece ser devidamente estudada e apreciada, dera provas admiráveis do vigor do seu cérebro e da rara elevação da sua inteligência. Ele honrou brilhantemente o posto que lhe fora confiado, empenhou-se, sem cansaço, em divulgar a instrução aos moçambicanos por meio de escolas desde as de primeiras letras até universidades. Em apenas 10 anos aumentou o número de Universidades de 16 para 46, de meros 20 mil estudantes universitários para 120 mil, promoveu os estudos indispensáveis para a perfuração do solo, para a abertura das estradas, para a reconstrução dos caminhos-de-ferro, para a realização de todos os capítulos enfim duma grande obra de fomento e de progresso, em organizar e pôr em marcha, com esse destino, missões dos mais ilustres técnicos então no vigor da vida – como eu –, levados simultaneamente pelo amor à ciência e pelo espírito de aventura e sacrifício, em animar e tornar realizáveis os sonhos de muitos moçambicanos, em montar os pólos de desenvolvimento, para deixarmos de vez de nos concentrar exclusivamente nas cidades e irmos para os planaltos e planícies espalhar os benefícios do desenvolvimento, em proteger eficazmente a acção dos nossos beneméritos filhos e vocês netinhos. Entre as mais elevadas realizações, posso mencionar a reversão da Hidroeléctrica de Cahora Bassa de Portugal para o nosso país, depois de 30 anos independentes; a construção da ponte que leva o seu nome e outra, a da Unidade…, aeroporto de Nacala, etc. Ele esteve no Governo desde a independência nacional – vocês já sabem do ano, não é? E a História já vos ensinou que houve guerra dos três nomes: de desestabilização, dos 16 anos ou civil. Foi Guebuza quem negociou, em dois anos, os termos da paz, representando o Governo, como chefe da delegação.


· Avó, fale-nos qual foi o envolvimento dele na segunda guerra da Renamo?


Ah… os perigos vinham de todos os lados. Os disparos de metralhadoras haviam voltado pela mesma mão de há duas décadas. Já fluíam as conversações tendentes a minimizar o clima de tensões. E todo o diálogo obedecia ao objectivo de apressar a obra de progresso, que tínhamos a nosso cargo, e de melhorar, sucessivamente, as condições dos moçambicanos, na paz. Por toda a parte se desenvolvera então a ambição dos inimigos da Frelimo. A Renamo resolvera apossar-se do poder, embora para o conseguir tivesse de afrontar os princípios de justiça e de esquecer os deveres duma aliança de décadas, à sombra da qual obtivera sempre assinaladas vantagens. Apresentou o princípio de Paridade para equilibrar as coisas na Comissão Nacional de Eleições, nas Forças Armadas e mesmo na Segurança. Um articulista da CIP escrevia que «a intolerância política, a exclusão, o aumento da pobreza e das desigualdades foram amplamente apontados como sendo parte das possíveis causas do conflito».


Os que cobiçavam a felicidade dos frelimistas adquiriram deste modo uma arma poderosíssima para combaterem ali a sua influência e poderem guiar os moçambicanos ao sabor dos seus interesses. Souberam aproveita-la, sem sombra de escrúpulos. Por todo o sertão de Gorongosa, e principalmente em Moxungue, instalaram-se alguns lunáticos, possuidores de largos recursos materiais, contra os quais as reduzidas forças ali estacionadas em constantes movimentos mal podiam lutar. Dos órgãos de comunicação social surgiram homens empenhados quase exclusivamente em desenraizar do coração dos moçambicanos o amor a Pátria e em os levantar, em som de guerra, contra o seu próprio Governo. Um ano antes, penso, Guebuza, compreendendo a ociosidade que movia o espírito de muitos deles apelara que não usassem mal o instrumento de que se serviam para ridicularizar o Governo: o Facebook, para que não se tornasse em «fábrica de sonhos irrealizáveis». O espírito de rebelião lavrou intensamente, como uma queimada que se propaga através dos campos duma floresta virgem, em grande parte, do nosso país. Mas mais uma vez, Guebuza provou que era dos que acobardam facilmente e soube, em todas as conjunturas, arcar com as suas responsabilidades. Foi um ciclo heróico, em que o homem de que desejais conhecer, auxiliado eficazmente pelos homens de sua confiança, escreveu de novo, com o seu suor e o seu labor, páginas das mais belas de coragem e de patriotismo.


- O avó foi para a zona de conflito! O que ia lá fazer e o que viu?


Naqueles dias os renamistas continuavam a emboscar as viaturas como se fossem animais incapazes de regular as suas acções e destituídos da razão e campeavam desassombradamente nas florestas, matando homens e mulheres, crianças e velhos suspeitos de apoiarem o regime, sem leis que lhes impedissem as infames práticas, e considerando-se até como beneméritos, vangloriando-se da benéfica influência que diziam exercer na Grande Gorongosa. Até 11 de Abril de 2013 – eu encontrava-me na Europa – haviam morrido oito pessoas. O seu chefe, continuava ali, num local chamado Sadjunjira, a dar conferências de dia e a armar ciladas de tomada do poder pela força nas noites. Em 3 de Abril de 2013, em Moxungue, seis polícias revestidos da autoridade moral para proteger a área haviam sido mortos, a mando do chefe que nas próprias palavras «para salvaguardar a sua vida, a única solução que teve foi de dar ordens aos seus homens para responderem pela mesma medida, atacando o posto policial», tendo considerado os ataques a viaturas, assassinatos de civis e saque de bens de viajantes registados na EN-1, de «acidentes de percurso». Havia informações muito confusas sobre o curso dos acontecimentos e eu, como um Tucídides testemunhando uma guerra grega, lancei-me na aventura. No futuro irei contar-vos. Pouco tempo depois, em 17 de Junho daquele ano eram invadidos um Paiol das FADM na estrada de Inhaminga, e outro Paiol, entre Derunde e Muanza. O saldo de mortos nos dois incidentes às mãos da Renamo era de 13 militares. Desloquei-me a Savane onde colhi depoimentos dos que sobreviveram o terror daquele dia. Num deles conta-se que:


«É possível que os que vinham fazer obras de reabilitação do Paiol tenham sido quem deu detalhes da nossa segurança aos atacantes. Não compreendíamos como era possível entregar aos civis uma reabilitação de um centro encontrado numa zona tida como hostil. Mas também podem ter sido os desertores ou ainda aqueles reformados compulsivos, ainda descontentes. O que nos prejudicou foi que as nossas armas não disparavam por falta de manutenção, além de que nós apenas tínhamos treino com objecto fixo. Agora, as coisas mudaram. No dia do assalto dois colegas haviam ido a estrada – Dondo - onde notaram um movimento estranho. Quando voltaram ao Paiol reportaram o que haviam visto e como resposta, foram metidos na cela pois haviam chegado tarde e o que tinham reportado parecia, aos olhos da hierarquia, uma forma de justificarem a ausência injustificada. Eles só foram libertos durante o ataque quando mais de 100 homens invadiram o paiol, usando alicates para cortar o arame farpado. Mas não roubaram muito material bélico, salvo as armas e as fardas das vítimas e algumas munições. Todas as vítimas mortas eram despidas do seu fardamento. Mataram sete colegas a facada. Um era oficial-dia que veio em socorro, foi ferido e escondeu-se numa mata onde perdeu muito sangue. Foi descoberto no dia seguinte, levado ao Hospital Central da Beira onde veio a falecer duas semanas depois. Após aquilo recebemos o reforço de Maputo de todos os comandos, de todas as especialidades. Seguimos os passos dos atacantes mas não encontramos ninguém. Depois, houve ordem para queimar a mata. Num muchém encontramos um corpo de algum velho que fora atingido pelos nossos disparos, enrolado num dos nossos cobertores e numa capa de chuva. Era mesmo velho! O corpo já estava em estado de decomposição. Quando foram disparadas algumas armas pesadas foram obrigados a abandonar grandes quantidades de munições. Quanto aos nossos que atacaram as viaturas fingindo-se de agentes da Renamo é importante dizer que não foram os nossos colegas. Uma coisa importante a reter é que há muitas deserções dentro das FADM. Dos 83 que fomos no começo do ano, após os acontecimentos de Muxungue e de Savane ficamos vinte e pouco. Dizem-nos que foram transferidos para outras unidades, mas temos a certeza de que trataram-se de deserções, pois já recebemos cartas de familiares, namoradas, amigos e deles próprios (dos colegas de farda). O medo de morrer é maior que o gosto para servir a pátria. Não entendemos, não compreendemos, não queremos guerra. Por vezes esse desejo de deserção aparece por influência vinda de fora. O nosso salário de cerca de 2400 meticais é suficiente, uma vez que temos todo o necessário para viver em termos de alimentação e de roupa/higiene. Não é verdade que estejamos a ambicionar o salário dos homens da Força de Intervenção Rápida. Aliás, é preciso saber que a FIR não está autorizada a entrar para alguns terrenos. Por isso a nossa presença lado a lado com ela tornou-se essencial num assunto aparentemente policial. O ambiente é tenso, já não dormimos tranquilos. Um dos meus colegas morreu muito mal, com a facada na boca, golpes no corpo, etc. Os atacantes só usavam arma para quem tentasse resistir mas a facada era o seu modus operandi. Eles gritavam «ndamuona-ndamuona, phata na manja» que quer dizer, «já o vi, apanhe-o pelo braço» o que nos deixou apavorados».

Era preciso dar-lhes batalha formal, fossem quais fossem os inconvenientes políticos que resultassem da extinção dessa iniquidade, afrontosa para todos os princípios democráticos. A essa missão, tão digna das almas bem formadas, dedicou-se o espírito cavalheiresco de Guebuza, homem intemerato da causa liberal, lutador insigne, de tanta coragem e heroicidade, de crenças muito sólidas e uma tenacidade de aço. Nenhuma dificuldade conseguia amedrontar-lhe o ânimo, nenhum perigo era capaz de o fazer vacilar, não obstante ser diabolizado pelos Jornais da Direita. Nada, porém, conseguia quebrantar a tenacidade do apóstolo, entre nós, da libertação. Foi o que sucedeu na realidade. A partir dessa época os acontecimentos precipitaram-se porque a corrente já era muito impetuosa e a onda tornara-se tão alta que galgava sem custo todos os obstáculos. No momento em que entrava para Sofala a fim de proceder com a presidência aberta, ordenava a invasão de Sadjungira, a 21 de Outubro daquele ano. As Forças Armadas fizeram tudo o que esteve a seu alcance para evitar danos humanos, tendo usado, para o efeito, um amplificador de som que, à distância, comunicava «saiam, retirem-se, apenas queremos a base». O chefe, com os seus acólitos, retiraram-se sem oferecer resistência. Durante a fuga – isto me contaram no terreno - havia ordem para que ninguém usasse celular, mas um dos fugitivos acabou sendo apanhado a telefonar e, de imediato, foi considerado espião. Para salvaguardar os interesses do grupo pagou com a própria vida, mas o anúncio da sua morte viria dos próprios colegas em 25/10/2013. Ele era um deputado que na altura dos acontecimentos devia estar na Assembleia da República, como dissera o Ministro José Pacheco. 


O combate tinha de ser muito rude, porque, do outro lado da barricada, estavam prontos para se defenderem até a última extremidade todos os que tinham interesses ligados à odiosa Frelimo e perfilhavam a crença geral e enraizada de que só uma guerra marcaria o fim do regime. Para se avaliarem as resistências erguidas contra o esforço de Guebuza de estabelecer um verdadeiro Estado de Direito basta lembrar que dezenas de organizações que se diziam ser da Sociedade Civil levantaram as suas vozes criticando-o e atenuando afrontar directamente a Renamo, o que fez com que o porta-voz da presidência, Edson Macuacua, se pronunciasse amargamente nestes termos: «É de facto estranho que quando as Forças de Defesa e Segurança, que têm legitimidade e legalidade para actuarem em defesa da segurança do Estado, actuam, dirigentes das organizações da sociedade civil aparecem frenéticos com discursos inflamatórios de condenação. É caso mesmo para perguntar, a quem servem estes dirigentes das organizações da sociedade civil? Qual é a agenda destas organizações? Parece que perseguem objectivos e agendas inconfessáveis, contrários aos interesses nacionais”. Sim, isso netinhos foi escrito no CanalMoz, de 28/10/2013

E o exército continuou a dar o golpe de morte das bases da Renamo espalhadas pela savana atirando para o exílio os homens que nelas faziam a sua vida obscura, organizando os mais cruéis métodos de morte. A Renamo avançara para o Sul, na província de Inhambane, na esperança de fazer estremecer os alicerces do regime; mas nenhum obstáculo seria capaz de atemorizar o espírito de Guebuza ainda no momento em que os tratadistas mais eminentes e partidários do regime consideravam Dhlakama insusceptível de trabalhar para a paz a não ser pela coacção e pela força. E passando das palavras aos factos, em 24 de Abril do mesmo ano, apresentava argumentos cuja aplicação resultaria na criação de um grupo de negociações. Quando era geral a convicção de que o Presidente da República é que era arrogante, Guebuza, na sua prontidão admirável, proclamava já o mais nobre princípio, aquele a cuja aplicação se deveram os mais belos resultados da convivência política moderna, o diálogo, sintetizando-o nestas palavras: "Apesar da situação de Sadjundjira, estou pronto para receber o senhor Afonso Dhlakama para dialogar. As nossas delegações política e militar continuam prontas para acertos do nosso encontro".

Não é que disse isto na Soalpo, ali em Chimoio, numa presidência aberta! Fê-lo sem perder de vista que aos homens da Renamo era preciso dar-lhes completa segurança de pessoa e propriedade para se desenvolver entre eles a instrução, criando-lhes escolas numerosas e hospitais, abrindo-lhes vias de comunicação que facilitassem as transacções comerciais e pelas quais a força armada pudesse marchar sem embaraço para manter a ordem pública ou para repelir agressões estranhas. Havia convicção inabalável de que por estes e por outros meios que se empregariam, se faria aumentar as necessidades dos renamistas, as quais estimulariam os mesmos a buscar pelo seu trabalho meios de as satisfazer. Quem pensava deste modo não poderia deixar de honrar as suas opiniões, trabalhando quanto em suas forças coube para conseguir a completa emancipação do adversário. Mas a Renamo continuava defendendo a sua ideia de Paridade nos órgãos eleitorais, e não só. É aqui que surgiu aquilo que no provérbio local dizemos dar a mão e pegar o braço. 

A atmosfera nacional não estava ainda bem preparada. Os interessados, no estado de coisas estabelecidas, possuíam poderosos meios de influência e não queriam declarar-se vencidos, por isso, tudo fizeram para criar impasses. Guebuza não era homem para desanimar e ainda menos para desistir e logo, na semana seguinte renovava o apelo de negociar com o Senhor Dhlakama. Apesar disso, as suas ideias de uma revolução sem sangue continuavam a encontrar uma viva oposição. Viu-se forçado a criar ambiente propício para o diálogo, não num hotel de luxo mas no Centro de Conferências, para que ele pudesse triunfar. E a Renamo, atacou um camião em Nampula, aquela via que vai a Cuamba. Mas não foi a única vez. Os oportunistas também fizeram ataque a um empresário local, problema de dívidas com funcionários, segundo se comentava. Mas ai, os atacantes eram parte de guarda pessoal do Sr. Dhlakama que foram sendo capturados um a um e não se sabe se cumpriram cadeia ou não. Não sei o que lhes aconteceu lá no comando provincial, porque na Cadeia, perto de onde o vosso avô trabalhava, não havia mostras de terem entrado.

Os renamistas de outras latitudes, pelo seu lado, não se resignavam a perder os seus interesses, nem queriam sujeitar-se à derrota, apesar de a sentirem próxima. Acoitaram-se em Inhaminga, em Kaphiridzanje – lá na zona do vosso bisavo –, em Nkondedzi, entre outros locais, onde o domínio das forças armadas não estava ainda solidamente firmado e abriram ali, com o máximo impudor, sucursais escandalosos de treinos militares onde a miúdo eram vendidas, em ignóbil leilão, as almas dos jovens recrutados à força na cidade da Beira, recrutas prontamente atribuídos às forças armadas convencionais. E havia entre eles alguns mercenários interessados nas pedras preciosas. Um deles, lembro-me, chegou a pedir-me o contacto do Administrador da Gorongosa, a julgar que eu caia facilmente. A esse degradante espectáculo de recrutamento só meses depois é que se pôs um termo, precisando o Governo para isso de organizar uma expedição e conseguindo então que as forças armadas desactivassem algumas bases. Foi no ano seguinte, nos dias 2 e 3 e o vosso avô estava no local. Não imagineis quanto me doi o coração, de imaginar o sucedido naqueles dias. Chovia intensamente e eu desci em Caia tendo seguido, primeiro, a direcção do régulo Tinga Tinga. Deixemos isso para amanhã.

A verdade é que as campanhas de Gorongosa, de Inhaminga e de Moxungue, contra os inimigos numerosos e escondidos, incitados, instruídos e municiados pelos que queriam, acima de tudo, derruir o nosso domínio – eu nessa altura soube estar do lado certo –, ficaram famosas entre as mais notáveis campanhas de todos os tempos pela rapidez de execução, castigo exemplar dos rebeldes e forma completa como atingiram o seu objectivo. Os ataques de surpresa diminuíram drasticamente na EN1. As FADM foram duras no castigo, mas combateram sempre com nobreza e lealdade que, submetidos os renamistas, jamais os perseguiram com represálias cruéis. Terminados os combates, esqueciam-se do mal que eles, obedientes joguetes de ambições alheias, os quiseram causar. O compromisso das FADM aos renamistas, combatendo no fundo as suas tendências para a ociosidade e o seu amor à inércia e à matança, que levava muitos deles a viverem exclusivamente da mulher, não receava confrontos directos, caso fosse preciso. E o que é oportuno frisar é que a guerra de autodefesa que as forças armadas moviam contra o extermínio do povo era mal vista pelos adeptos da Renamo que já se orgulhavam de ter um defensor mais forte, capaz de submeter a temida Força de Intervenção Rápida.

Nessa ocasião, os apologistas silenciosos da violência viram com manifesta má vontade o enérgico correctivo que as forças infligiram aos criminosos de Moxungue, de Gorongosa, de Inhaminga, de Maringue, trocando a esse respeito uma demorada e azeda correspondência facebookiana entre si; desaprovando o que as FADM haviam feito e criando-lhes depois dificuldades à ocupação dos espaços, que indiscutivelmente lhes pertenciam. E mais tarde, as FADM não hesitavam em enxovalhar a Renamo da maneira mais civilizada obrigando-lhe a restituir-lhes as bases. Isso não impediu que ela, abusando da sua força, sujeitasse as populações à humilhação a que me referi e que fez brotar dos lábios de Gabriel Muthisse, sub-chefe da delegação governamental ao diálogo, as frases mais belas e de mais rubra indignação de quantas constituíram a glória da sua missão: «a Renamo deve enterrar o machado da guerra», disse ele.


O diálogo com esta organização classificada como «terrorista» por Gustavo Mavie, num programa «Café da manha da Rádio Moçambique, em meados de Abril de 2014, foi um trabalho portentoso de inteligência, de continuidade e de confiança nos nossos destinos. Um trabalho de ingente preparação e, ao mesmo tempo, de realizações imediatas, tanto que fomos nós os primeiros que abrimos às portas ao diálogo nacional e sem interferências externas nesta parte de África, não obstante a Renamo insistir na internacionalização do conflito. Até que numa destas vezes atacou o comboio de carvão, precisamente quando estava em ascensão, o que lhe causou danos irreparáveis presságios do seu fim. Tenho que tomar umas notas, amanhã retomamos.