Por vezes a História faz o homem, em vez de o homem fazer a História. Quando os meus netos me perguntarem quem foi Guebuza terei muitas coisas para dizer. Para começar, todos os videntes da época falharam perscrutar os seus planos. Numa dessas vezes, tinham dito que ele não havia de deixar a presidência. Outras vezes diziam que ele queria acabar com os partidos da oposição, e até de dividir o próprio partido, enfim, muito sonambulismo.
Guebuza foi o eminente e humanitário homem de Estado, que consagrara toda a sua vida e toda a sua alma à causa da emancipação dos moçambicanos para confiarem nas próprias forças. Foi o terceiro presidente deste belo país. Vi-o inúmeras vezes e diferentes locais, mas o momento marcante foi aquele em que ele dava por terminada tão formosa como altruísta missão de dirigir os destinos deste país quando observou que "não é a alternância em si que dá vitalidade à democracia, é, isso sim, a sua possibilidade" reconhecendo que adversários da Frelimo "batalham, dia e noite para que o seu sonho seja materializado", mas que os membros da Frelimo deviam trabalhar "sempre unidos, coesos e firmes, para que esse seu sonho se transforme em pesadelo". Fazia inaugurações e despedia-se do povo que governara por uma década. A abolição da política de mão estendida em que foi mais uma vez o primeiro percursor, representou sem dúvida para nós o cumprimento dum dever de humanidade e a consequência lógica da política guebuziana e de que nos orgulhamos e voz orgulhareis por longos anos como dum brasão de família. Foi Guebuza que transformou milhões de homens moçambicanos em milhões de cidadãos moçambicanos. Alguns dos pais dos vossos amigos abriram olhos de criticar o Governo nessa época, coisa que era impensável, 23 anos antes.
E fi-lo sem hesitação, decidido a levar essa obra até às suas últimas consequências, a completá-la definitivamente, atraindo os seus críticos a uma civilização mais adiantada, aproximando-se deles com solicitude , respondendo-lhes as provocações e ferindo-lhes a imaginação e os sentidos com os exemplos mais impressionantes do que o homem pode conseguir com o seu trabalho e energia, ensinando-lhes, como se ensina a uma criança, o uso que devia fazer das forças e faculdades de que dispõem para sair da pobreza. De tempos a tempos alertava aos seus críticos, mas estes nem sempre se davam conta. Usava linguagem poética para criticar os seus críticos que muitas vezes não suportavam o peso dos adjectivos. Ah, netinhos, como é bom recordar os murmúrios dos apóstolos da desgraça daquele tempo; os tagarelas; os saudosistas; os intriguistas. Os tínhamos aos montes; uma espécie de homens, hoje da minha idade, que viam tudo o que provinha do Governo como errado.
Guebuza, cuja obra se impõe como um exemplo e merece ser devidamente estudada e apreciada, dera provas admiráveis do vigor do seu cérebro e da rara elevação da sua inteligência. Ele honrou brilhantemente o posto que lhe fora confiado, empenhou-se, sem cansaço, em divulgar a instrução aos moçambicanos por meio de escolas desde as de primeiras letras até universidades. Em apenas 10 anos aumentou o número de Universidades de 16 para 46, de meros 20 mil estudantes universitários para 120 mil, promoveu os estudos indispensáveis para a perfuração do solo, para a abertura das estradas, para a reconstrução dos caminhos-de-ferro, para a realização de todos os capítulos enfim duma grande obra de fomento e de progresso, em organizar e pôr em marcha, com esse destino, missões dos mais ilustres técnicos então no vigor da vida – como eu –, levados simultaneamente pelo amor à ciência e pelo espírito de aventura e sacrifício, em animar e tornar realizáveis os sonhos de muitos moçambicanos, em montar os pólos de desenvolvimento, para deixarmos de vez de nos concentrar exclusivamente nas cidades e irmos para os planaltos e planícies espalhar os benefícios do desenvolvimento, em proteger eficazmente a acção dos nossos beneméritos filhos e vocês netinhos. Entre as mais elevadas realizações, posso mencionar a reversão da Hidroeléctrica de Cahora Bassa de Portugal para o nosso país, depois de 30 anos independentes; a construção da ponte que leva o seu nome e outra, a da Unidade…, aeroporto de Nacala, etc. Ele esteve no Governo desde a independência nacional – vocês já sabem do ano, não é? E a História já vos ensinou que houve guerra dos três nomes: de desestabilização, dos 16 anos ou civil. Foi Guebuza quem negociou, em dois anos, os termos da paz, representando o Governo, como chefe da delegação.
· Avó, fale-nos qual foi o envolvimento dele na segunda guerra da Renamo?
Ah… os perigos vinham de todos os lados. Os disparos de metralhadoras haviam voltado pela mesma mão de há duas décadas. Já fluíam as conversações tendentes a minimizar o clima de tensões. E todo o diálogo obedecia ao objectivo de apressar a obra de progresso, que tínhamos a nosso cargo, e de melhorar, sucessivamente, as condições dos moçambicanos, na paz. Por toda a parte se desenvolvera então a ambição dos inimigos da Frelimo. A Renamo resolvera apossar-se do poder, embora para o conseguir tivesse de afrontar os princípios de justiça e de esquecer os deveres duma aliança de décadas, à sombra da qual obtivera sempre assinaladas vantagens. Apresentou o princípio de Paridade para equilibrar as coisas na Comissão Nacional de Eleições, nas Forças Armadas e mesmo na Segurança. Um articulista da CIP escrevia que «a intolerância política, a exclusão, o aumento da pobreza e das desigualdades foram amplamente apontados como sendo parte das possíveis causas do conflito».
Os que cobiçavam a felicidade dos frelimistas adquiriram deste modo uma arma poderosíssima para combaterem ali a sua influência e poderem guiar os moçambicanos ao sabor dos seus interesses. Souberam aproveita-la, sem sombra de escrúpulos. Por todo o sertão de Gorongosa, e principalmente em Moxungue, instalaram-se alguns lunáticos, possuidores de largos recursos materiais, contra os quais as reduzidas forças ali estacionadas em constantes movimentos mal podiam lutar. Dos órgãos de comunicação social surgiram homens empenhados quase exclusivamente em desenraizar do coração dos moçambicanos o amor a Pátria e em os levantar, em som de guerra, contra o seu próprio Governo. Um ano antes, penso, Guebuza, compreendendo a ociosidade que movia o espírito de muitos deles apelara que não usassem mal o instrumento de que se serviam para ridicularizar o Governo: o Facebook, para que não se tornasse em «fábrica de sonhos irrealizáveis». O espírito de rebelião lavrou intensamente, como uma queimada que se propaga através dos campos duma floresta virgem, em grande parte, do nosso país. Mas mais uma vez, Guebuza provou que era dos que acobardam facilmente e soube, em todas as conjunturas, arcar com as suas responsabilidades. Foi um ciclo heróico, em que o homem de que desejais conhecer, auxiliado eficazmente pelos homens de sua confiança, escreveu de novo, com o seu suor e o seu labor, páginas das mais belas de coragem e de patriotismo.
- O avó foi para a zona de conflito! O que ia lá fazer e o que viu?
Naqueles dias os renamistas continuavam a emboscar as viaturas como se fossem animais incapazes de regular as suas acções e destituídos da razão e campeavam desassombradamente nas florestas, matando homens e mulheres, crianças e velhos suspeitos de apoiarem o regime, sem leis que lhes impedissem as infames práticas, e considerando-se até como beneméritos, vangloriando-se da benéfica influência que diziam exercer na Grande Gorongosa. Até 11 de Abril de 2013 – eu encontrava-me na Europa – haviam morrido oito pessoas. O seu chefe, continuava ali, num local chamado Sadjunjira, a dar conferências de dia e a armar ciladas de tomada do poder pela força nas noites. Em 3 de Abril de 2013, em Moxungue, seis polícias revestidos da autoridade moral para proteger a área haviam sido mortos, a mando do chefe que nas próprias palavras «para salvaguardar a sua vida, a única solução que teve foi de dar ordens aos seus homens para responderem pela mesma medida, atacando o posto policial», tendo considerado os ataques a viaturas, assassinatos de civis e saque de bens de viajantes registados na EN-1, de «acidentes de percurso». Havia informações muito confusas sobre o curso dos acontecimentos e eu, como um Tucídides testemunhando uma guerra grega, lancei-me na aventura. No futuro irei contar-vos. Pouco tempo depois, em 17 de Junho daquele ano eram invadidos um Paiol das FADM na estrada de Inhaminga, e outro Paiol, entre Derunde e Muanza. O saldo de mortos nos dois incidentes às mãos da Renamo era de 13 militares. Desloquei-me a Savane onde colhi depoimentos dos que sobreviveram o terror daquele dia. Num deles conta-se que:
«É possível que os que vinham fazer obras de reabilitação do Paiol tenham sido quem deu detalhes da nossa segurança aos atacantes. Não compreendíamos como era possível entregar aos civis uma reabilitação de um centro encontrado numa zona tida como hostil. Mas também podem ter sido os desertores ou ainda aqueles reformados compulsivos, ainda descontentes. O que nos prejudicou foi que as nossas armas não disparavam por falta de manutenção, além de que nós apenas tínhamos treino com objecto fixo. Agora, as coisas mudaram. No dia do assalto dois colegas haviam ido a estrada – Dondo - onde notaram um movimento estranho. Quando voltaram ao Paiol reportaram o que haviam visto e como resposta, foram metidos na cela pois haviam chegado tarde e o que tinham reportado parecia, aos olhos da hierarquia, uma forma de justificarem a ausência injustificada. Eles só foram libertos durante o ataque quando mais de 100 homens invadiram o paiol, usando alicates para cortar o arame farpado. Mas não roubaram muito material bélico, salvo as armas e as fardas das vítimas e algumas munições. Todas as vítimas mortas eram despidas do seu fardamento. Mataram sete colegas a facada. Um era oficial-dia que veio em socorro, foi ferido e escondeu-se numa mata onde perdeu muito sangue. Foi descoberto no dia seguinte, levado ao Hospital Central da Beira onde veio a falecer duas semanas depois. Após aquilo recebemos o reforço de Maputo de todos os comandos, de todas as especialidades. Seguimos os passos dos atacantes mas não encontramos ninguém. Depois, houve ordem para queimar a mata. Num muchém encontramos um corpo de algum velho que fora atingido pelos nossos disparos, enrolado num dos nossos cobertores e numa capa de chuva. Era mesmo velho! O corpo já estava em estado de decomposição. Quando foram disparadas algumas armas pesadas foram obrigados a abandonar grandes quantidades de munições. Quanto aos nossos que atacaram as viaturas fingindo-se de agentes da Renamo é importante dizer que não foram os nossos colegas. Uma coisa importante a reter é que há muitas deserções dentro das FADM. Dos 83 que fomos no começo do ano, após os acontecimentos de Muxungue e de Savane ficamos vinte e pouco. Dizem-nos que foram transferidos para outras unidades, mas temos a certeza de que trataram-se de deserções, pois já recebemos cartas de familiares, namoradas, amigos e deles próprios (dos colegas de farda). O medo de morrer é maior que o gosto para servir a pátria. Não entendemos, não compreendemos, não queremos guerra. Por vezes esse desejo de deserção aparece por influência vinda de fora. O nosso salário de cerca de 2400 meticais é suficiente, uma vez que temos todo o necessário para viver em termos de alimentação e de roupa/higiene. Não é verdade que estejamos a ambicionar o salário dos homens da Força de Intervenção Rápida. Aliás, é preciso saber que a FIR não está autorizada a entrar para alguns terrenos. Por isso a nossa presença lado a lado com ela tornou-se essencial num assunto aparentemente policial. O ambiente é tenso, já não dormimos tranquilos. Um dos meus colegas morreu muito mal, com a facada na boca, golpes no corpo, etc. Os atacantes só usavam arma para quem tentasse resistir mas a facada era o seu modus operandi. Eles gritavam «ndamuona-ndamuona, phata na manja» que quer dizer, «já o vi, apanhe-o pelo braço» o que nos deixou apavorados».
Era preciso dar-lhes batalha formal, fossem quais fossem os inconvenientes políticos que resultassem da extinção dessa iniquidade, afrontosa para todos os princípios democráticos. A essa missão, tão digna das almas bem formadas, dedicou-se o espírito cavalheiresco de Guebuza, homem intemerato da causa liberal, lutador insigne, de tanta coragem e heroicidade, de crenças muito sólidas e uma tenacidade de aço. Nenhuma dificuldade conseguia amedrontar-lhe o ânimo, nenhum perigo era capaz de o fazer vacilar, não obstante ser diabolizado pelos Jornais da Direita. Nada, porém, conseguia quebrantar a tenacidade do apóstolo, entre nós, da libertação. Foi o que sucedeu na realidade. A partir dessa época os acontecimentos precipitaram-se porque a corrente já era muito impetuosa e a onda tornara-se tão alta que galgava sem custo todos os obstáculos. No momento em que entrava para Sofala a fim de proceder com a presidência aberta, ordenava a invasão de Sadjungira, a 21 de Outubro daquele ano. As Forças Armadas fizeram tudo o que esteve a seu alcance para evitar danos humanos, tendo usado, para o efeito, um amplificador de som que, à distância, comunicava «saiam, retirem-se, apenas queremos a base». O chefe, com os seus acólitos, retiraram-se sem oferecer resistência. Durante a fuga – isto me contaram no terreno - havia ordem para que ninguém usasse celular, mas um dos fugitivos acabou sendo apanhado a telefonar e, de imediato, foi considerado espião. Para salvaguardar os interesses do grupo pagou com a própria vida, mas o anúncio da sua morte viria dos próprios colegas em 25/10/2013. Ele era um deputado que na altura dos acontecimentos devia estar na Assembleia da República, como dissera o Ministro José Pacheco.
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