Machado da Graça, no Savana 29/03, fala de três episódios que se resumem em
racismo, um comportamento que tende a ganhar espaço no país. Na sua tese,
talvez tal se deva aos pronunciamentos políticos pouco agradáveis. De facto, temos
notado, com susto, como parte considerável de moçambicanos tem-se esforçado em
pôr as leis em oposição aos costumes de modo a que com o andamento natural das
coisas se faça tudo para excitar a inveja de uma classe e para exaltar as
pretensões da outra. Esforça-se em fazer com que o povo se habitue a ver no
governo uma força inimiga que só ele pode manter ou destruir. É necessário
evitar a progressão desta embriaguez que, quando mais tarde se quiser
refreá-la, nos levará a provocar uma revolução de que viremos a ser vítima.
Devemos reconhecer que esta nova potência, o povo, adquire
cada dia mais força e a nação liberta-se, por assim dizer, por si própria. Enquanto
foram só as classes privilegiadas a gozar de uma existência fácil, podia
governar-se o Estado como uma corte, manejando habilmente as paixões e os
interesses de alguns indivíduos; mas assim que a classe mais activa e numerosa
da sociedade, tem consciência da sua importância, torna-se indispensável a
descoberta e aplicação de uma forma de governar melhor. Não nos podemos
conservar cegos ao que está para além dos interesses da nossa nação e ainda
mais ao que é contrário a esses interesses.
A miséria e a ignorância não devem ser recompensadas pelas
arbitrariedades do poder. A miséria aumenta a ignorância, a ignorância aumenta
a miséria; e quando nos perguntamos por que razão o povo tem estado
constantemente indignado e a criticar, não podemos encontrar a resposta senão
na ausência de felicidade, que, nas palavras de M. Staêl, conduz à ausência de
moralidade. Hoje, vemos os bandidos estarem mais unidos quando as vítimas estão
cada vez mais desunidas. Hoje vemos uma polícia indisciplinada atirando a queima roupa a concidadãos indefesos, a tratar com brutaridade outros por não possuirem Bilhete de Identidade, quão legado colonial! A causa principal e constante deste estado de coisas é
o peso da miséria. A miséria do polícia e a miséria do povo.
A miséria evitável que incide exclusivamente sobre o povo, o
reduz à inactividade sem esperança e sem opções. A miséria que torna o agente de segurança em burlador público! A miséria que torna dura a vida das donas
de casa em administrar os ordenados. A miséria que torna os casais infelizes
quando surge uma gravidez! A miséria que torna a vida do encarregado de
educação difícil quando seu educando passa, com sucesso, o exame de admissão
para uma universidade. A miséria que transforma os momentos que deviam ser de felicidade em
momentos de pesadelo. A miséria que destrói os lares incentivando o espírito
de amantismo.
As coisas estão neste ponto quando ainda não surgiu, como um
astro brilhando no meio de uma noite profunda, a grande revolução. Os espíritos
fermentam prodigiosamente. O método de livre exame, de que os outros se
serviram no passado para abalar os governantes até aos alicerces, é a arma
temível por meio da qual os excluídos poderão sabotar o edifício corroído baseado
nas velhas crenças e nos velhos preconceitos, segundo os quais, quem não
comunga connosco é contra nós. Tornou-se inevitável uma reflexão
que tenha em consideração todas as camadas políticas e sociais e todos os interesses em jogo. Temos uma força residual em países
estrangeiros, capaz de contribuir para o progresso nacional. Não podemos lhe fechar
olhos, chamemo-la, incentivemo-la a vir concorrer com a mão estrangeira. Precisamos reatar os traços que nos
unem como um povo e esquecer o que nos divide. Enfim, uma reflexão inclusiva, onde a oposição e a posição tenham como meta o bem servir.
Precisamos de uma reforma educacional profunda, não uma
reforma dos métodos pedagógicos, mas uma, capaz de transformar a educação em
centro de preparação de quadros conhecedores da problemática do país e
identificados com as aspirações nacionais, em condições de contribuir para o
desenvolvimento nacional e da construção de uma sociedade melhor. Precisamos de
uma reforma sanitária, capaz de devolver vida as pessoas, oferecendo ao rico e ao pobre os mesmos espaços. Enquanto relegarmos para o segundo plano os problemas da educação, da saúde e
outros, enquanto prevalecerem os métodos de exclusão de ingressos aos vastos
subsistemas de ensino, quer através da redução de vagas nos primeiros anos,
quer dificultando os exames de admissão, de modo a só permitir a entrada
daqueles jovens com condições financeiras para a dispendiosa preparação,
enquanto poucos continuarem a ser tratados em hospitais estrangeiros, enquanto
poucos continuarem a comer verdura da África do Sul, a Carne do Brasil, a
Cerveja da Europa, teremos o confronto entre as forças vivas da sociedade, e
uma segunda revolução será inevitável.
Mas os moçambicanos têm em suas mãos o seu destino. No actual estágio em que a carestia de vida está, corremos
sérios problemas de criar uma sociedade de privilégios, se não trabalharmos juntos na busca de soluções. Necessitamos de uma reforma agrária, de que nos ocuparemos nos próximos artigos, de modo a minimizarmos as necessidades primárias. Quando passar três
refeições ao dia se torna em coisa para poucos, é um precedente perigoso. Não são
os famintos que combaterão a pobreza por mais boa vontade que estes tenham. É preciso
criarem-se condições capazes de garantir a refeição ao moçambicano para, uma
vez saciado, poder pensar por si. Só quando os outros deixarem de pensar por nós
estaremos capazes de dar um salto qualitativo nas condições de vida, pessoal, familiar e comunitária, e
fecharemos o turbilhão das incertezas quanto ao futuro.
Reconheçamos que os investimentos estrangeiros enriquecem,
por um lado, a parte industriosa do povo, passando nitidamente para o grupo dos
«empresários» e arruína, por outro, os até aqui grandes empresários,
aproximando assim as classes sociais no plano das fortunas e das possibilidades
para as ter. Paralelamente, a ciência e a educação aproximam-nas no plano dos
costumes e alimentam o espírito de igualdade entre os moçambicanos. Estas são
causas naturais que devem ser valorizadas. Porém, há outras meramente humanas. Os excluídos, para
combater os beneficiados, procurarão apoio nas forças de defesa e de segurança que
ainda apoiam o regime na sua luta contra a oposição. Mas assim que as forças de
segurança adquirirem força suficiente para não se contentarem com um papel
secundário, explodirão e tomarão o lugar no poder.
Em consequência, tudo pode estar pronto para uma grande
revolução e o comportamento do Governo pode favorecer muito a sua eclosão. Numa
sociedade em que a situação de classes está fundamentalmente transformada, só
uma equação de inclusão poderá salvar o regime. A repressão terá como efeito
imediato uma política nefasta em relação ao futuro. A salvação está no povo ao
qual nos devemos apoiar, como seria lógico, a única possibilidade de nos salvarmos, em vez de repeli-lo, favorecendo aos interesses alheios a ele que são, na
realidade, impotentes, porque mudarão em função do vento. Se há um meio de
impedir a explosão do poder popular, é o de associar ao governo o povo e de lhe
abrir todas as carreiras e possibilidades em vez de se fazer o contrário.