quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Lázaro Kavandame e o nacionalismo maconde (2)


O artigo seguinte foi, originalmente, entregue ao Comité de Descolonização das nações Unidas em 25 de Maio de 1965. O autor é membro do Comité Central da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO)




Sou um camponês de Moçambique, e trabalho na região de Mueda no norte do País. O meu nome é Lázaro Kavandame e quero dar a conhecer a minha experiência de camponês obrigado a trabalhar num país que se encontra sob a dominação colonial portuguesa. Espero que alguns dos factos da minha experiência pessoal possam dar úteis informações ao Vosso Comité e a todos os que se interessam em ajudar o meu povo para alcançar a liberdade contra a opressão portuguesa.

O Governo português não está interessado em aumentar o bem-estar do povo de Moçambique, contrariamente ao que propagandeia através do Mundo, fazendo o possível para alcançar a certeza de que os moçambicanos permaneceram ignorantes. Todas as tentativas do nosso povo para modificar a sua miserável condição são barbara e impiedosamente reprimidas pelo governo português.



As minhas actividades de líder politico popular começaram em 1957, ano em que tomei a responsabilidade de apresentar algumas petições do povo da minha região as autoridades portuguesas locais, após ter constatado as suas misérias e sofrimentos quando eram obrigados a trabalhar nas plantações europeias e asiáticas, ou a cortar madeira e a trabalhar na construção de estradas sem terem sequer as mínimas condições de vida e sem pagamento adequado.



Em primeiro lugar julguei que assim era devido ao nosso povo ser pobre e ignorante, e pedi as autoridades portuguesas que autorizassem que eu- e outros que sabiam ler e escrever, os ensinássemos. Eles eram constantemente chicoteados, encarcerados sem razão, obrigados a trabalhar sem alimentação durante longos períodos, ou multados por não alcançarem as cotas de algodão a que eram obrigados ao fim de cada colheita.



Também pedi que me deixassem organizar um programa de educação para ensinar melhores métodos de cultivo e conservação das colheitas, auxiliando-os a conseguir melhores resultados.



Eu esperava vir a ser capaz de reduzir o sofrimento da maioria dos nossos camponeses, obrigados a trabalhar sob vigilância persistente e opressiva do superintendente português, o qual esta sempre pronto a chicotear. Tentei mostrar as autoridades portuguesas que o salário de 60 escudos (2 Dólares) por mês dum trabalhador agrícola é insuficiente para um homem que também tem de pagar 120 escudos (4 dólares) anuais de impostos ao governo português, fora outras despesas.



As autoridades mandaram-me chamar um certo dia e autorizaram-me a iniciar um programa educativo para os camponeses africanos do meu distrito, permitindo-me também formar uma sociedade cooperativa dos agricultores locais. Além disso as autoridades informaram-nos de que poderíamos cultivar a superfície de terra que desejássemos, uma vez que produzíssemos a quantidade de algodão a que encontrava obrigada cada família africana.



O administrador português tentou desencorajar-me dizendo que era impossível ensinar o que quer que fosse a analfabetos. "Vos, os negros, sois preguiçosos, - dizia ele - a única coisa que vos faz trabalhar é o chicote". Entretanto, durante um certo tempo, ele deixou-nos trabalhar. Estabelecemos a sociedade cooperativa que chamamos "Sociedade Agrícola Algodoeira Voluntária dos Africanos de Moçambique". No princípio éramos 500 pessoas e, num grande campo, cultivamos mapira, amendoim e milho. Ao mesmo tempo cultivamos também a superfície de algodão a que nos obrigavam o governo e as companhias concessionárias, isto é, 4 hectares por família. Solicitamos então ao governo que nos permitisse estabelecer um fundo especial para a compra de bicicletas, papel, lápis, etc. de maneira a facilitar o trabalho da cooperativa.



Mais tarde, como as autoridades portuguesas notassem o êxito do nosso trabalho, fui de novo chamado a administração central do distrito, onde me perguntaram porque é que eu trabalhava tanto sem ser pago. Perguntaram-me, também, se alguém me pagava de qualquer maneira secreta. Respondi-lhes que ninguém me pagava coisa alguma e que o fazia, simplesmente, para o bem-estar do povo de Moçambique, de modo a que cada homem do nosso país viesse a possuir o que cada homem tem direito, vivendo com dignidade e sem sofrimento.



As minhas respostas não agradaram e as autoridades propuseram-me que eu aceitasse trabalhar para a companhia concessionária de algodão SAGAL, a qual controla a região noroeste do Moçambique, oferecendo-me um salário de 1000 escudos por mês (33,33 dólares), uma casa e uma motocicleta, explicando-me que tudo isso era devido ao meu bom trabalho.



Recusei essa oferta devido a sentir que já tinha contraído uma grave responsabilidade para com o meu povo, parecendo-me uma traição abandonar os que tinham confiado em mim durante tanto tempo. O dinheiro que os portugueses me ofereciam não me tentou pois o bem-estar do meu povo era, para mim, mais importante.



Em 1958, a nossa cooperativa tinha alcançado mais de 1000 membros, os quais eram, sobretudo, atraídos pelo facto de não terem de trabalhar sob a supervisão opressora do homem branco, e pelo facto de que, em conjunto podíamos produzir muito mais. Em Julho de 1959 alcançamos 1500 membros.



Foi por essa altura que o governo português, sob a instigação da SAGAL, a companhia concessionária do algodão da região começou a proibir que aumentássemos o número dos nossos membros, dizendo que dali em diante os africanos de Moçambique podiam somente trabalhar para a SAGAL.



Porém, mesmo após essa proibição, a companhia algodoeira não estava contente, pois os 1500 membros da nossa sociedade tinham a liberdade de trabalhar como lhes apetecia, sem serem obrigados, nem directamente explorados. A SAGAL iniciou então uma campanha de provocação mais directa. Sob o pretexto de investigação das nossas plantações, como lho permitia a autorização do governo, começou a enviar homens para visitarem os nossos campos, ordenando a destruição de todas as árvores frutíferas, tais como Laranjeiras e cajueiros, sob o pretexto de que elas eram prejudiciais a produção de algodão. Após isso muitos dos nossos membros começaram a ser presos e obrigados a trabalhar noutras plantações de algodão e sisal, acusados de não ter cumprido com as cotas obrigatórias de algodão. Para nos tornou-se óbvio que o governo português não estava interessado no nosso bem-estar, pois senão não mandava prender bons camponeses africanos, mandando-os para o trabalho forçado nas plantações europeias. Eu, pessoalmente, conclui que os portugueses se opunham a liberdade dos negros e a todas as suas tentativas para melhorar o seu padrão de vida.



Entretanto eu tinha convencido os membros da nossa cooperativa a construírem as nossas próprias estradas, de modo a facilitar o transporte da produção para os mercados centrais, evitando assim de caminhar muitos quilómetros transportando pesadas cargas. Assim, abrimos quatro estradas que nos ligavam com as estradas principais que comunicavam com as principais cidades. Quando os portugueses deram por isso, em vez de contentamento, ordenaram que eu fosse preso, com o pretexto de que não tinha pedido autorização para construir as estradas, e achando estranho que, por simples sugestão minha, o povo fosse capaz de construir trinta a quarenta quilómetros de estradas em tão pouco tempo, uma vez que o mesmo povo não trabalhava com vontade para o governo português.



Entrei na prisão em Setembro de 1959, permanecendo dois anos sem julgamento. Entretanto a nossa cooperativa foi dissolvida por ordem das autoridades, sendo presos muitos dos seus dirigentes. Em 1961 fui libertado da prisão, mas condenado a reclusão em casa. Uma semana depois fui interrogado acerca dos meus planos para o futuro, ao que respondi não ter nenhuns planos.



Então propuseram-me que estabelecesse outra sociedade cooperativa sob as condições seguintes: a sociedade permaneceria sob o controle directo do governo e não poderia ter mais de 25 membros. Por não ter alternativa aceitei a proposta que era feita, trabalhando arduamente durante dois anos para tentar reconstruir o que tinha sido perdido. Plantamos arroz, gergelim, batatas, mamonas e milho. Para podermos cultivar mais terreno sugeri aos membros que compra um tractor novo com os nossos próprios fundos. No dia da entrega do tractor houve uma festa em que participou, praticamente, todo o povo de Mueda e eu falei, explicando a importância do tractor para os nossos trabalhos, dizendo-lhes que os que nos acusavam de preguiçosos não tinham razão e que, para que o nosso povo prosperasse, o que tínhamos a fazer  era organizarmo-nos e aprender melhores métodos de cultura. Em nome da sociedade cooperativa coloquei o tractor a disposição dos Moçambicanos da região que dele necessitassem, pelo que todos me aplaudiram, agradecendo o que eu tinha dito e feito.



As autoridades portuguesas foram informadas acerca das minhas palavras, não tendo ficado satisfeitas com elas. Poucos dias mais tarde, a polícia começou a prender membros da nossa sociedade, acusando-os de vários crimes. Eu fui de novo chamado ao posto administrativo central da região e o administrador perguntou-me se eu tinha ouvido falar do que acontecera na Tanganyka, se eu sabia da existência dum novo movimento chamado FRELIMO, se eu próprio era membro desse movimento político, ou se trabalhava para ele.



Respondi que jamais ouvira falar desse movimento e deixaram-me voltar para casa a pé, uma distância de quase 5 quilómetros. Uma hora mais tarde um polícia bateu a minha porta, informando-me de que eu teria de voltar ao posto, para ser interrogado de novo. Era evidente que as autoridades queriam humilhar-me e assustar-me, mas obedeci e o funcionário português disse-me que eu deveria pensar seriamente na minha vida e não entrar em complicações. Após isso ordenou-me que voltasse a casa.



Passei a noite sem dormir, sabendo que jamais me deixariam em paz, que tudo o que eu fizesse seria controlado pelas autoridades, que a policia investigaria todos os meus passos e que os interrogatórios se tornariam ainda mais frequentes. A minha única esperança de salvação era a fuga, decidindo esconder-me na floresta em vez de voltar a casa, esperando poder continuar em contacto com os meus compatriotas e escapar a prisão.



Quando as autoridades souberam do meu desaparecimento, mandaram os soldados procurar-me nas florestas, mas sem resultado. A minha família e muita gente da minha região pensaram que os portugueses me tinham matado, principalmente após que as autoridades levaram tudo o que me pertencia.



Dez dias depois, quando as autoridades deixaram de me procurar, voltei calmamente a casa, contando a minha família e os outros compatriotas, ficando todos contentes com que eu não estivesse morto. Combinamos imediatamente uma reunião dos liders na floresta, para discutirmos a maneira de conquistar a nossa liberdade e expulsarmos os portugueses opressores da nossa pátria. Após uma longa e seria discussão concluímos que o povo makonde, sozinho, não seria capaz de expulsar o inimigo, decidindo então unir as nossas forças as dos outros povos de Moçambique.



Já tínhamos ouvido falar no estabelecimento do movimento de libertação em Junho de 1962, a FRELIMO, e contactamos os membros da FRELIMO na nossa região, dizendo-lhes que estávamos prontos a trabalhar com eles para a libertação do nosso país.



Como é sabido a FRELIMO declarou a insurreição geral armada contra os colonialistas portugueses em Moçambique em 25 de Setembro do ano passado. O nosso povo esperava pelo dia em que poderia levantar-se para poder lutar pela liberdade, regozijando-se com a declaração de guerra aos opressores, embora sabendo que ainda terão muito que sofrer com a repressão implacável do exercito e da policia portuguesa. Entretanto estamos determinados a lutar para alcançarmos a vitória. Deus deu-nos a vontade de vivermos livres e nada se poderá opor no caminho da nossa liberdade.

- Lázaro Kavandame.