domingo, 1 de novembro de 2015

Na Contingência da Guerra e da Paz a liberdade vencerá

Na tradição Ngoni, quando somos testemunhas de uma agressão na rua, não podemos deixar impunemente o mais fraco sozinho face ao mais forte, virar costas e seguir o nosso caminho. Acreditamos que a não assistência aos indivíduos em perigo, embora não constitua um delito, é uma falha moral que já custou demasiadas mortes e demasiado sofrimento a demasiados indivíduos para que aceitemos cometê-la. No dia 10 de Julho, saindo de Tsangano em direcção a Mitengo-Mbalame, ao longo da picada um jovem aparentemente debilitado estava a ser espancado pelos populares que o acusavam de ter sido um dos autores dos incêndios às habitações de Monjo. Parei o carro e falei para o homem que aparentava ser chefe daquele espectáculo. Quando o homem se aproximou da porta do meu carro, mostrei-lhe uma nota de 500 Mts (Quinhentos Meticais). Se meter este jovem no carro dou-lhe essa nota. O homem não resistiu e carregou o jovem para lá atrás da viatura. A fúria popular era tal que não a consigo descrever. O jovem era membro das Forças Armadas de Defesa de Moçambique que tinha sido atingido por uma bala dos guerrilheiros da Renamo, no dia 7 daquele mês, tendo permanecido três dias no mato onde acabou sendo achado por aquele grupo de homens ávidos de vingança. Estava a ficar tarde. Antes de ir-me embora, o homem que me vendeu a liberdade do jovem fez-me uma advertência mais ou menos como se segue: tenha cuidado senhor, há muito fósforo por ai; ainda é possível andar mas... mas... mas... a guerra vai estalar dentro de breves meses ou até dentro de poucos dias. Limitei-me a sorrir, um gesto que ele correspondeu enquanto se dobrava em gestos de gratidão pelo dinheiro que acabava de conseguir. 

Hoje, três meses depois daquele encontro ocasional, é de cada vez mais difícil ter-se a convicção de que, mais hora menos hora, se não ouvirá a detonação apavorante da pólvora sobre que se anda a riscar fósforos. Se não for doutra maneira, pode acontecer até que as armas, a tanto tempo apertadas, desfechem por si mesmas, já enfadadas de esperar que as disparem. E, todavia, não deixamos de admitir, no momento em que escrevemos, que o género de paz em que se vive e que tanto amargura o país, não chegue a sofrer alteração para pior. Com o agravante de que as flutuações económicas o irão inflamar. Em suma, a despeito de tudo, ainda confiamos em que não haja guerra. Ninguém desconhece - até os que pensam em bater-se e preparam o esforço máximo para sustentar os combates mais temerosos - que a guerra seria para todos, vencedores e vencidos, a mesma catástrofe a prazo, a destruição apocalíptica do país e da obra reconstrutora que, através de duas décadas, nele ergueu o espírito de paz e de tolerância. E a aconselhar a prudência e o espírito de conciliação - não obstante os preparativos bélicos e as atitudes ameaçadoras - acresce também este factor psicológico, capaz de influir decisivamente no ânimo do povo como influi no dos indivíduos: o medo. Com efeito, o receio do que a guerra poderá ser para cada uma das partes em contenda é o que mais tem valido à manutenção da paz nestas horas incertas e sobremodo inquietantes. A forma como terminou o último conflito é força motriz para ainda pisar-se o travão da guerra pois a certeza numa vitória militar já teria feito desencadear o que nos parece um evitável conflito. 

Confiemos, pois, em que esse factor psicológico continue a exercer a sua acção pacificadora e salutar. Neste canto de África, os moçambicanos correm o perigo certo e iminente de os envolver a catástrofe, se a loucura se tornar mais forte do que o medo. Nada temos a ver com os antagonismos que dividem os políticos, nem com as reivindicações territoriais que põem agudamente o problema da paz ou guerra. Para o povo comum que somos não existem objectivos ocultos e perigosos, interesses políticos cuja preponderância exija imposição, e muito menos ódios que nos levem a admitir a necessidade duma guerra, quanto mais desejá-la. Em poucas palavras, quer isto dizer que, inalteravelmente fiéis aos interesses da nossa crença numa paz duradoura e justa, e nos termos em que ela significa para nós, não deixaremos de expressar o nosso repúdio às acções e discursos de propaganda da desordem. Não somos, por isso, dos povos que, tornado inevitável o pior e desencadeado, para mal de todos, o conflito, mais devam temer as suas consequências. Não somos de exigir reuniões sem resultado porque não temos mais razões para nos acautelarmos contra a paz, sobretudo se, para afastar o flagelo da guerra, os homens desavindos as convocarem. Um encontro convocado com fins de satisfazer e equilibrar as ambições e os interesses dos fortes, pode tornar-se mais traiçoeiro do que as contingências duma guerra. Moçambique tem razões de sobra para não esquecer o que representou para ele o vocábulo «guerra». A História diz-nos, através do que depois se soube, que as reuniões entre os grandes têm sido algumas vezes apenas a fachada jurídica de combinações inconfessáveis antes concertadas no segredo dos protagonistas. E as suas decisões apaziguadoras podem, afinal, mostrar-se ainda mais injustas do que a voz dos canhões. 

A entrega daquele jovem por aquele grupo de furiosos fez-me ter a certeza de que no lugar de acções que nos aniquilem, deveríamos conferir glória e esperança à liberdade conquistada. Da nossa experiência de um extraordinário e inexplicável desastre humano que durou tempo demais, deveria nascer uma sociedade da qual todos os moçambicanos se orgulhariam. Deveríamos compreender que cada um de nós está tão intimamente enraizado no solo deste país e que ninguém é mais moçambicano do que os demais. A sensação estranha que partilhamos explica a dor que trazíamos no coração quando víamos o nosso país a despedaçar-se num terrível conflito. Esperamos pelo dia em que estenderemos saudação fraterna: Aos humilhados das áreas em conflito, aos refugiados ao Malawi, aos exilados na própria terra, que querem viver e viver livres. Àqueles e àquelas que são amordaçados, perseguidos ou torturados por simples suspeita de pertencerem a este ou aquele grupo, que querem viver e viver livres. Aos sequestrados das cidades, aos desaparecidos do meio rural  e aos assassinados, que queriam viver e viver livres. Aos pastores/sacerdotes brutalizados, aos jornalistas silenciados, às viúvas e às órfãs que vendem o seu corpo para sobreviverem, aos trabalhadores sem direitos de irem trabalhar, aos camponeses sem terra, aos resistentes sem armas, que querem viver e viver livres. Esperamos ardentemente por esse dia. Enquanto esperamos dizemos a todos eles: coragem, a liberdade vencerá.


Eusébio A. P. Gwembe, Izmir, Turquia