quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

A legitimidade para reclamar

O último relatório do índice de desenvolvimento humano coloca-nos na cauda do mundo. Estamos entre os dez piores países, em termos do rendimento percapita, da esperança de vida e do nível de educação. À primeira vista tive a sensação de que fomos injustiçados e se assim foi deve haver um culpado. De lá para cá, fiquei a procura do culpado. Porém, antes de o encontrar, comecei por avaliar o meu próprio desempenho durante o ano. É que, se os indicadores de que se serviram são distribuídos ao colectivo, este por sua vez é a soma dos vários «individuais» de que faço parte. Tratou-se de uma improdutividade colectiva mas com responsabilidade individual. 

Compreendi que as desculpas históricas de colonização, das calamidades naturais, da guerra e outras para justificar o meu fracasso são a almofada para a minha inércia. É verdade que teria N desculpas para me safar. Contudo, parece-me que já não é plausível culpar o colonialismo de todos os meus males. Embora a colonização tenha deixado cicatrizes profundas no imaginário colectivo, é claro que o colono também deixou para trás coisas úteis e boas como estradas, escolas, hospitais, fronteiras, a língua, as leis. Neste sentido, o colonialismo foi a base da Unidade Nacional. 

Mas hoje, em que mais de 70% dos africanos de hoje nasceram já depois da independência, começo a ter vergonha de evocar o colonialismo pela minha incompetência. O colonialismo não condena necessariamente um país à penúria eterna. A Correia, anexada pelo Japão em 1910 sofreu a destruição da sua cultura com o seu povo submetido à servidão. A língua coreana foi banida, os coreanos impedidos de aceder à universidades. Os jovens eram enviados para os trabalhos forçados nas minas e nas fábricas de munições no Japão, ou obrigados a servir no exército. Mais de cem mil mulheres foram submetidas a servidão sexual nos bordéis militares como «mulheres de conforto». 

Expulsos os japoneses, em 1945, eclodiu uma guerra civil que deixou divididos os coreanos em Norte e Sul. A parte Sul que era tão pobre como o Ghana em 1953, é hoje vinte vezes mais rica. Este país e os seus habitantes poderiam ter razões suficientes para culpar o passado. Como notou Robert Guest, o contraste é o Zimbabwe em que o Presidente, como Primeiro-ministro recebeu o país com uma das melhores economias da África. É claro que conseguiu disfarçar durante algum tempo. Porém, ao apreender a propriedade privada, deu um aviso surdo aos investidores internos como externos para que «não ponham o seu dinheiro no Zimbabwe[1]». 

Fixou o preço do petróleo abaixo do que custa a importar, pelo que as bombas secaram. Tentou criar dinheiro imprimindo mais notas causando hiperinflação. Usando políticas que falharam noutros lugares tornou os zimbabweanos muito mais pobres do que eram à data da independência. Medidas de contenção das despesas atingiam hospitais e escolas enquanto ministros ainda andavam de Mercedes Benz e o orçamento militar nunca sofria reduções. Leis sensatas eram aprovadas mas postas de lado logo que o cheque da ajuda entrasse nos cofres.  Os  zambianos também estão mais pobres do que quando o colono saiu de lá, porque a crença na acção afirmativa para aumentar o número de  negócios dirigidos por negros consistiu em distribuição massiva de lugares na função pública e empréstimos bancários para os amigos da nomenclatura. 

E a África do Sul, pode correr o mesmo risco em poucas décadas, se o ANC continuar com o que nos é dado a saber. Há bons exemplos na África. O Botswana tem sido consistentemente democrático e melhor gerido. A sua economia tem reforçado a sua democatização e é hoje  um dos poucos modelos de desenvolvimento democrático e económico numa África carente de exemplos. Mas para o conseguir, os Tswana tiveram que trabalhar duro. A sua liberdade não significou apenas o poder de votar. A sua liberdade significou reorganizar uma companhia na falência e colocá-la, juntamente com uma injecção maciça de capital, nas mãos de novos gestores, diferentes dos incompetentes que a tinham arruinado antes.  

Não serão os outros a fazer com que Moçambique figure entre os melhores. Tenho que ser eu, pelo esforço próprio. Os estrangeiros ou o Governo podem ajudar, mas o sucesso dependerá de mim. Quero ser diferente, apostar mais no que o país e os outros verdadeiramente necessitam. Os britânicos tornaram-se ricos produzindo têxteis melhores e mais baratos e outros produtos que tanto os nacionais como os estrangeiros estavam desejosos de comprar. O Japão melhorou técnicas de fabrico inventadas noutros países de forma a produzir carros melhores e mais baratos, semicodutores e aparelhos de fax; a América soube criar desejo de muita gente para passar a gostar de filmes americanos, remédios americanos, aviões americanos, serviços dos bancos americanos. Quero contribuir com ideias para criar condições de transformar as matérias-primas em produtos manufacturados. 

Quero a liberdade de cavar a minha fortuna sem embaraços oficiais. E vou trabalhar para isso. Não quero mais culpabilizar a guerra da Renamo pela minha improdutividade de hoje. Os angolanos ficaram muito mais tempo em guerra e, por conseguinte, têm menos anos de paz do que eu. Porém, longe de serem muito miseráveis, os problemas que hoje enfrentam dizem respeito as dinâmicas do seu desenvolvimento. Eu quero fazer alguma coisa para deixar de viver num país em que empresários e albinos são raptados, assassinados e onde as campas são vandalizadas, como meio de obter riqueza. 

Fui tentado a apontar as baterias para todos os lados: ao poder politico vigente que nada fez para alterar este estado de coisas; à oposição que desmobiliza, difama e vive vendendo a nossa desgraça, lá fora. Os corruptos foram outros moçambicanos, menos eu. A corrupção que tanto odeio foi obra dos outros. O que eu dei e recebi a mais e à margem de qualquer serviço foi tido como uma simples gratidão; os outros é que não trabalharam. Tenho muitos culpados em que não me revejo. Em 2015, não tive capacidade suficiente de definir as prioridades, por isso estou entre os piores. 

A Constituição define como base do desenvolvimento do meu país, a agricultura. Mas, eu não sou agricultor, portanto não me revejo nesta constituição pelo que, mais uma vez, a culpa é dos outros, os tais que deviam fazer tudo para dignificar a base do desenvolvimento. Eu e a minha actividade fomos excluídos e, por via disso, não posso ser culpabilizado porquanto a minha actividade era secundária. Mas no novo ano, quero ser diferente. Quero criar ou promover a criação de associações para acederem aos vários fundos que o Governo e Organizações diversas colocam ao dispor do povo comum, no lugar de culpar a pertença partidária como condição. No fundo, no fundo, o que quero é a legitimidade de reclamar.





[1] GUEST. Robert. África, Continente Acorrentado: O Passado, o Presente e o Futuro da África. Civilização Editora, Barcelona, 2005