segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

O estranho silêncio dos camaradas




Alarme! A Renamo mudou de água para vinho. E o MDM do vinho para a água. O momento histórico que vamos atravessando, não será, talvez, o prenúncio de ocasiões difíceis, mas é certamente um momento de graves preocupações dignos de reparo para quantos pensam no futuro duma Frelimo que foi grande, entre os maiores partidos libertários, e tem, nas páginas da história africana, mais duma epopeia brilhante. O telefone mágico de Dezembro passado trouxe consigo um fenómeno novo na história da Frelimo: o silêncio. De repente as vozes da reserva moral se calaram. O silêncio sepulcral. Uma armadilha ou uma harmonia? Pelo sim ou pelo não, há momentos em que é preciso falar. Ainda que a voz de quem fala seja insignificante para merecer a atenção da corte. Calou-se Joaquim Chissano. Já não fala Graça Machel. Já não fala Sérgio Vieira. Já não fala Jorge Rebelo, já não fala Teodato Hunguana. Já não fala Luísa Diogo. Todos eles, nem apoiam nem se opõem ao rumo das coisas. Harmonia ou submissão? Satisfeitos?  Será o silêncio de concordância ou de traição. O que nos diz a nossa história?

A Renamo que nos combate há quatro décadas se ergue. Pode ser com a nossa ajudinha, o que é mau! Pelo esforço e pela audácia dos nossos libertadores, soubemos conquistar o mais extenso quinhão das almas que Salazar ocultava à África, e chamar para o convívio da liberdade milhões de homens, avassalados pelo colonialismo. Desvendamos ao continente inteiro, que nos contemplava, este desejo genuíno que se acumulava para além duma simples resistência e se havia conservado por 477 anos sem que ninguém conseguisse aproveita-lo em benefício dos moçambicanos. Atingimos com vertiginosa rapidez o apogeu da glória. A bandeira moçambicana flutuou vitoriosa nas mais longínquas paragens onde se abriam representações diplomáticas. Cá dentro, os estrangeiros prestavam vassalagem aos heróis que, pelo esforço do seu braço poderoso e pela fina têmpera das suas alabardas e montantes, tinham conseguido impor-se ao número incalculável dos inimigos que pretendiam impedir-lhes o passo e evitar-lhes o predomínio.

Representávamos, então, o partido dominador e tínhamos nas veias esse sangue generoso e quente, que em Lusaka nos firmara a autonomia e nos assegurára a paz. Nessa época em que arrancamos o poderoso Portugal o senhorio de Moçambique, em que fizemos desta terra o porto mais importante da Linha da Frente, nem éramos mais numerosos. A nossa grandeza e a nossa força era-nos dada pela fé que nos alentava, pela esperança de que nos engrandeceríamos, pela convicção profunda e inabalável de que pela Pátria tudo deveríamos sacrificar. Mas sobretudo, pela crítica e pela autocrítica, como estatuado no nosso estatuto.

Infelizmente passaram esses tempos gloriosos; a pouco e pouco foi-se-nos enfraquecendo o braço, e a guarda avançada dos desastres começados em Tete, pela mão da então África Livre, alastrou-se como lepra que devia corroer-nos em dezasseis anos de triste e amargurada privação da felicidade. A tradição que havíamos sido, a vergonha do que éramos nesse período de lágrimas e de sangue, fez-nos tentar um esforço e o Leão de Dar-es-Sallam sentiu, que nos heróis da liberdade não se havia extinguido por completo o valor de antigas eras. E por mais de duas décadas pode acreditar-se que novamente readquiriríamos o prestígio abalado e a força perdida em tão cruéis e duras provações. Sucedeu-se, porém, a invasão de Moxungue, a luta fratricida que as novas ideias proclamadas em 2012 e desde então tinham ateado por toda a parte. Depois de implantada a nova liberdade, em Setembro de 2014, que era o fruto óptimo de tanto sangue derramado e de tanta incerteza, adormecemos serenamente a pensar em glórias e conquistas passadas, sem repararmos na evolução social, que ao nosso lado se erguia, para transformar os moçambicanos e desenvolver-lhes as ambições de confiarem em nós. Enquanto a Renamo e o MDM se preparavam para a conquista pelos processos mais práticos e mais eficazes, nós permanecemos nessa estática contemplação que nos colocou a beira do abismo e agora nos ameaça às conquistas, o poder, a tranquilidade e a autonomia.

Como o leão da fábula aqui estamos velhos e fracos, sujeitos as vaias, falsas acusações de roubo de votos e aos apupos dos que não souberam descobrir, mas que aprenderam, nesse código de astucia e ardis a que se chama esperteza, a aproveitar-se do trabalho alheio. Já fomos corridos de duas das três cidades principais do país. Em 2018 somos obrigados a defender o que temos e a reconquistar o que perdemos. É esta a nossa situação: difícil, dolorosa, terrível. É a lei da vida dos partidos, atingir as mais altas cumeadas para descer depois aos mais profundos vales. O que nos resta é subir novamente a encosta, por onde nos deixamos resvalar e, ganhar de novo às alturas só inacessíveis para os fracos e para os pusilânimes. Falem camaradas, quer concordem como não com o rumo das coisas. O nosso adversário já espreita e precisamos de defender o nosso período de glória. Em conjunto.  Algures no centro, estão três cidades, devidamente assinaladas. No Norte, uma. E todas elas estão ali naquelas mãos porque alguém decidiu dormir em serviço. Foram eles quem nos roubou os votos pelo excesso da nossa confiança. Mas são cidades por serem libertas, porque não fomos nós que apanhamos a oposição a dormir. Como as libertaremos em silêncio cúmplice?

Mas para que este novo período de engrandecimento recomece, para que possamos conservar com honra a tradição brilhante que até nós chegou, unamo-nos ao presidente Nyusi, dizendo-lhe algo, e convençamo-nos de que, se não temos legiões que cheguem para a conquista do que às outras foi dado assoberbar, nos hão-de chegar meia dúzia de centúrias para defender o que de direito nos pertence: Beira, Nampula, Quelimane, Gurue, Moçambique. Mas é necessário que falemos. Abandonar Nyusi não é solução certa. Mesmo que esta seja a vontade dele. Não fiquemos contentes com os dizeres do tipo “agora Nyusi está a começar dirigir”. São armadilhas, que nos custarão o alto preço. Se chegámos até onde chegamos foi porque éramos uma equipa. Vivíamos, dormíamos, comíamos e lutávamos em equipa. Essa conversa do herói individual é uma grande falha. Unamo-nos, sim, com um só pensamento, o engrandecimento da Frelimo e com ela, o de Moçambique. Mas nessa união, não esqueçamos um só instante de que somos os bons e os leais frelimistas doutras eras, e que o sangue que nos alimenta a vida e nos aquece o organismo, é esse sangue nobre e generoso, que pode ainda elevar-nos com a mesma fé e conseguir com a mesma esperança e que o momento psicológico para a nossa reabilitação seja a data gloriosa em que vai passar para nós a terra perdida.