domingo, 21 de abril de 2013

A Guerra: O dia em que tive medo da noite!


«Os recentes discursos belicistas da Renamo me recordam capítulos idos e despertam-me o inconsciente. Segredos, mágoas, ressentimentos no coração, mas também esperança, porque se não posso mudar o passado, ao menos posso escolher o futuro que desejo. Este texto não tem propósito de manchar quem quer que seja, apenas contar episódios por mim presenciados. Se suscitar dúvidas, o mesmo terá contribuído para o seu propósito».
 
Sábado, 1 de Junho de 1985. O sol desponta e o gado bovino e caprino faz barrulho em sinal de protesto pela fome. A mesma que afecta as pessoas. Mas não me posso preocupar tanto porque hoje é dia do mercado. A minha avó a quem, desde há cinco anos que a minha mãe foi raptada a chamo de mamã, ausentou-se. Foi ao mercado vender couves. Talvez de lá volte com um bolinho, uma banana e umas bolachas. Não tenho razão de ter medo. Ninguém vai zangar pelo meu atraso. A aldeia está calma. Aqui e ali só se vêm crianças e algumas mulheres. Os homens, estes, já se foram alistar nos exércitos para defender a pátria ou aos Bandidos Armados. É o que se fala. Outros tantos já fugiram para o país vizinho. Crianças, estas altas, como o meu caso, correm o risco de serem levados a qualquer altura, para irem defender os exércitos, porque como nos sopraram, esta guerra só vai acabar quando as mulheres daqui deixarem de dar à luz varões.
 
Marten e eu estamos duvidosos se devemos ir pastar o gado na mesma planície de ontem. Talvez seja melhor irmos para o outro lado da montanha. Lá onde fomos ontem, há muitas hienas. Na noite passada viemos com algumas infiltradas entre os cabritos. A vida do campo é esta, mas sobretudo a vida do pastor de gado. Tem de saber lidar-se com os diferentes animais porque como disse avó, antes de morrer, um pastor de gado deve aprender a ser gado. E nós interiorizamos este conceito. Marten pergunta se já temos uma decisão acertada. Não, respondo eu. Mas não tenho medo das hienas, até porque elas são giras. Também não tenho medo do leopardo, só aquele da semana passada que eliminou-nos os 15 cabritos. Rimo-nos um do outro. E Damião? Pergunta ele. Ah, aí vem ele, bem apressado. Damião chega e faz-nos uma pergunta se temos conhecimentos do que está a acontecer na aldeia. Nós não sabemos de nada. Ah, vieram os madjubas. É este o nome pelo qual são conhecidos os rebeldes. Renamo? Não sei quando é que ouvi falar desse nome. Neste momento ninguém chama por Renamo, mesmo eles. Renamo é um nome inexistente aqui...
 
Estão a recolher os bois daqui da aldeia e a recrutar pessoas para o transporte dos mantimentos. É a coluna, temos de ficar preparados. Ficamos assustados, e tentamos acertar o que vamos fazer com o nosso gado! Ah, é melhor deixarmos que tomem conta, responde Marten. Samson, que até então não tinha aberto a boca recusa-se e diz que irá defender os seus, até a última consequência. Persuadimo-lo, para não o fazer. Nós somos crianças, nada podemos fazer. Mas ele recusa-se. Ele tem acima de 61 cabeças do pai, eu tenho 48, Damião tem 24 e Marten tem 37. Só de nós vão ter que levar para cima de 150 cabeças. Uff. É maningue. E o que havemos de dizer aos nossos pais? Dois homens armados chegam e ordenam a abertura dos nossos currais. Receosos abrimos e o gado começa a sair. Vocês vão ter que ir pastando esse gado enquanto vamos caminhando. Samson recusa-se a abrir o seu curral, mesmo sob ameaça da espingarda enquanto nós olhamos atentamente a saída de cada um dos nossos gados. Incrédulos no que está a acontecer. Somos levados para junto das demais pessoas, preparadas para iniciar a viagem para Matenge, a grande base da província. Informações que temos é que a viagem leva três meses.

O chefe da coluna explica: viemos aqui tomar o vosso gado porque soubemos que os homens desta terra trabalhavam no governo marxista. Viemos aqui porque soubemos que os homens desta aldeia fugiram todos só deixando as mulheres e crianças. Viemos aqui porque vocês nunca contribuíram para os nossos víveres. Hoje vamos levar todos, todos! A viagem é longa e espinhosa! Aqueles que chegarem ao destino deverão agradecer, mas agradecer mesmo. Depois, dá instruções de como é feita a caminhada. O caminho é o mesmo. Onde pisa a primeira pessoa, toda a gente aí deverá pisar, caso não, corre risco de pisar mina. Inicia com a separação por sexo, idade e robustez. As meninas serão as nossas mulheres e algumas senhoras daqui do grupo. Ouvem-se prantos de todo o tipo, mas aqueles homens estão determinados! E Samson? Ele está preso, por ter recusado abrir o curral. Um dos homens, o que aparenta ser o chefe do grupo avisa a todos: este rapaz vai ser o exemplo do que poderá acontecer com qualquer um que tentar contrariar as ordens. Nós somos Matsangas! Diz em tom vingativo. Perguntem Mandebvu quem somos nós.
 
Primeiro é a contagem e dá a entender que somos mais de 70, excluindo crianças. Caminhamos em direcção a um local. Depois nos dizem que paremos! Todos que fiquem deitados, a viagem prossegue a noite. Os pastores devem conduzir atentamente o gado. Afinal, eles sabem que o gado tem esse instinto de obedecer ao pastor. Pastamos, pastamos! Os cabritos foram mortos no local e a carne levada. Dizem que será a comida ao longo da viagem. E os porcos e as galinhas? Ficam, os primeiros requerem fogo para o seu tratamento e as galinhas, o seu barrulho. Medo do fumo. O fumo denuncia. Melhor os bois! E Samson? Ele está preso, desobedeceu a ordem. Olho atentamente para os lados e procuro saber de Marten o que podemos fazer para ajudar Samson. Nada! Avisa-me ele com um dedo nos lábios. De repente uma criança chora, do meio daquele silêncio sepulcral. Ah, diz o chefe! Tinha me esquecido.
 
Não caminhamos com crianças do colo mas também não podemos libertar as suas mães senão seremos denunciados. Vocês não sabem de onde viemos nem para onde vamos. A caminhada é longa e espinhosa. Chama a mãe da criança e diz-lhe que tem uma opção: matar o bebê. Murmúrios!! Enquanto ela recusa, um tiro sai de um lado desconhecido e atinge o bebê. É o fim da primeira vítima, com aviso: esta noite vamos eliminar todas as crianças.  E será a facada. Não podemos gastar munições! Olho para o Samson, ainda amarrado aí perto. Pergunto-me se ele será o próximo. Reparo para os impiedosos homens e pela cabeça me passam as imagens dos bebés da aldeia, um por um, lindos! Lanço olhos para poder vê-los pela última vez, porque tudo leva a crer que tem horas contadas. As mulheres com crianças são separadas e agrupadas num único local. Estou com medo da noite!
 
Continua!
 
Pedro MAHRIC