«Os recentes discursos belicistas da Renamo me recordam capítulos idos e despertam-me o inconsciente. Segredos, mágoas, ressentimentos no coração, mas também esperança, porque se não posso mudar o passado, ao menos posso escolher o futuro que desejo. Este texto não tem propósito de manchar quem quer que seja, apenas contar episódios por mim presenciados. Se suscitar dúvidas, o mesmo terá contribuído para o seu propósito».
Sábado, 1 de Junho de 1985.
O sol desponta e o gado bovino e caprino faz barrulho em sinal de protesto pela
fome. A mesma que afecta as pessoas. Mas não me posso preocupar tanto porque
hoje é dia do mercado. A minha avó a quem, desde há cinco anos que a minha mãe
foi raptada a chamo de mamã, ausentou-se. Foi ao mercado vender couves. Talvez
de lá volte com um bolinho, uma banana e umas bolachas. Não tenho razão de ter
medo. Ninguém vai zangar pelo meu atraso. A aldeia está calma. Aqui e ali só se
vêm crianças e algumas mulheres. Os homens, estes, já se foram alistar nos
exércitos para defender a pátria ou aos Bandidos Armados. É o que se fala. Outros tantos já
fugiram para o país vizinho. Crianças, estas altas, como o meu caso, correm o
risco de serem levados a qualquer altura, para irem defender os exércitos,
porque como nos sopraram, esta guerra só vai acabar quando as mulheres daqui
deixarem de dar à luz varões.
Marten e eu estamos
duvidosos se devemos ir pastar o gado na mesma planície de ontem. Talvez seja
melhor irmos para o outro lado da montanha. Lá onde fomos ontem, há muitas
hienas. Na noite passada viemos com algumas infiltradas entre os cabritos. A
vida do campo é esta, mas sobretudo a vida do pastor de gado. Tem de saber
lidar-se com os diferentes animais porque como disse avó, antes de morrer,
um pastor de gado deve aprender a ser gado. E nós interiorizamos este conceito.
Marten pergunta se já temos uma decisão acertada. Não, respondo eu. Mas não
tenho medo das hienas, até porque elas são giras. Também não tenho medo do
leopardo, só aquele da semana passada que eliminou-nos os 15 cabritos. Rimo-nos
um do outro. E Damião? Pergunta ele. Ah, aí vem ele, bem apressado. Damião
chega e faz-nos uma pergunta se temos conhecimentos do que está a acontecer na
aldeia. Nós não sabemos de nada. Ah, vieram os madjubas. É este o nome pelo
qual são conhecidos os rebeldes. Renamo? Não sei quando é que ouvi falar desse nome. Neste momento ninguém chama por Renamo, mesmo eles. Renamo é um nome inexistente aqui...
Estão a recolher os bois
daqui da aldeia e a recrutar pessoas para o transporte dos mantimentos. É a
coluna, temos de ficar preparados. Ficamos assustados, e tentamos acertar o que
vamos fazer com o nosso gado! Ah, é melhor deixarmos que tomem conta, responde
Marten. Samson, que até então não tinha aberto a boca recusa-se e diz que irá
defender os seus, até a última consequência. Persuadimo-lo, para não o fazer.
Nós somos crianças, nada podemos fazer. Mas ele recusa-se. Ele tem acima de 61
cabeças do pai, eu tenho 48, Damião tem 24 e Marten tem 37. Só de nós vão ter
que levar para cima de 150 cabeças. Uff. É maningue. E o que havemos de dizer
aos nossos pais? Dois homens armados chegam e ordenam a abertura dos nossos
currais. Receosos abrimos e o gado começa a sair. Vocês vão ter que ir pastando
esse gado enquanto vamos caminhando. Samson recusa-se a abrir o seu curral,
mesmo sob ameaça da espingarda enquanto nós olhamos atentamente a saída de cada
um dos nossos gados. Incrédulos no que está a acontecer. Somos levados para
junto das demais pessoas, preparadas para iniciar a viagem para Matenge, a
grande base da província. Informações que temos é que a viagem leva três meses.
O chefe da coluna explica:
viemos aqui tomar o vosso gado
porque soubemos que os homens desta terra trabalhavam no governo marxista.
Viemos aqui porque soubemos que os homens desta aldeia fugiram todos só
deixando as mulheres e crianças. Viemos aqui porque vocês nunca contribuíram
para os nossos víveres. Hoje vamos levar todos, todos! A viagem é longa e
espinhosa! Aqueles que chegarem ao destino deverão agradecer, mas agradecer
mesmo. Depois, dá instruções de como é feita a caminhada. O caminho é o mesmo.
Onde pisa a primeira pessoa, toda a gente aí deverá pisar, caso não, corre risco
de pisar mina. Inicia com a separação por sexo, idade e robustez. As meninas
serão as nossas mulheres e algumas senhoras daqui do grupo. Ouvem-se prantos de
todo o tipo, mas aqueles homens estão determinados! E Samson? Ele está preso,
por ter recusado abrir o curral. Um dos homens, o que aparenta ser o chefe do
grupo avisa a todos: este rapaz vai ser o exemplo do que poderá acontecer com
qualquer um que tentar contrariar as ordens. Nós somos Matsangas! Diz em tom
vingativo. Perguntem Mandebvu quem somos nós.
Primeiro é a contagem e dá
a entender que somos mais de 70, excluindo crianças. Caminhamos em direcção a
um local. Depois nos dizem que paremos! Todos que fiquem deitados, a viagem
prossegue a noite. Os pastores devem conduzir atentamente o gado. Afinal, eles
sabem que o gado tem esse instinto de obedecer ao pastor. Pastamos, pastamos!
Os cabritos foram mortos no local e a carne levada. Dizem que será a comida ao
longo da viagem. E os porcos e as galinhas? Ficam, os primeiros requerem fogo
para o seu tratamento e as galinhas, o seu barrulho. Medo do fumo. O fumo
denuncia. Melhor os bois! E Samson? Ele está preso, desobedeceu a ordem. Olho
atentamente para os lados e procuro saber de Marten o que podemos fazer para
ajudar Samson. Nada! Avisa-me ele com um dedo nos lábios. De repente uma
criança chora, do meio daquele silêncio sepulcral. Ah, diz o chefe! Tinha me
esquecido.
Não caminhamos com crianças
do colo mas também não podemos libertar as suas mães senão seremos denunciados.
Vocês não sabem de onde viemos nem para onde vamos. A caminhada é longa e
espinhosa. Chama a mãe da criança e diz-lhe que tem uma opção: matar o bebê.
Murmúrios!! Enquanto ela recusa, um tiro sai de um lado desconhecido e atinge o
bebê. É o fim da primeira vítima, com aviso: esta noite vamos eliminar todas as
crianças. E será a facada. Não podemos gastar munições! Olho para o Samson, ainda amarrado aí perto. Pergunto-me se ele será
o próximo. Reparo para os impiedosos homens e pela cabeça me passam as imagens
dos bebés da aldeia, um por um, lindos! Lanço olhos para poder vê-los pela
última vez, porque tudo leva a crer que tem horas contadas. As mulheres com
crianças são separadas e agrupadas num único local. Estou com medo da noite!
Continua!
Pedro MAHRIC