quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Na véspera de uma oportunidade

Ultimamente, no Centro de Conferências «Joaquim Chissano», as rondas de diálogo têm tido resultados satisfatórios entre o Governo e a Renamo. No começo da semana, enquanto se negociava a paz, Muchanga, em nome da Renamo, proferia ameaças contra o Estado, prometendo uma insurreição generalizada. Quando a Renamo assim fala é porque está apertada e o faz como grito de socorro. As declarações feitas falam por si. Negociar a paz não é fácil, nem para o Governo, nem para a Renamo, nem para as vítimas directas da guerra que observam este momento com uma grande esperança mesclada de apreensão. Não é certamente fácil para as famílias das vítimas da violência e do terror da guerra, cuja dor nunca será mitigada, nem para os muitos militares que defenderam o povo sozinhos e até sacrificaram as suas vidas pelas do povo. A experiência de um mês nas zona de conflito provou-me ser a Renamo, e sempre ela, quem inicia com as hostilidades. Um militar, lá nas montanhas, disse-me a mim e ao meu companheiro de viagem, que é normal para a Renamo atacar as forças armadas com único objectivo de conseguir munições para a caça o que implica haver baixas do lado do exército. E as forças convencionais nada fazem senão reagir contra o agressor pois, como disse Américo Matavele, nenhuma arma cuspe rebuçados. Nalgumas regiões por onde andei foi a Renamo quem demarcou limites como se de uma autoridade suprema se tratasse. Na Casa Banana as forças armadas não podem aproximar-se do limite mas, sempre que a Renamo o deseje, ultrapassa o marco que ela própria colocou atacando as forças alí estacionadas. Lembrei-me de um soldado que conversou comigo nas cercanias da Casa Banana, dizendo-me que o único desejo que tinha era que a guerra acabasse antes que eles – os soldados – acabassem. Quando passei pela segunda vez no mesmo local, para saudá-lo e dizê-lo que já havia sinais de paz, os amigos de armas disseram-me que tinha sido morto no último ataque da Renamo. Para ele, estes dias e estes sinais chegaram demasiado tarde! Hoje, na véspera de uma oportunidade recordo-me dele com um amor eterno.


Aqui vos digo, senhoras e senhores, que não serve de nada recusar reconhecer ao exército o seu direito à auto-defesa, tal como o seu direito a defender a soberania. Admiro, como pessoas vivendo em países civilizados acham normal que tenhamos um partido armado; um partido que chantagea o próprio Governo para forçá-lo a comprar a estabilidade. Vou cometer a indiscrição de vos contar que um dos meus ajudantes de campo me contactou a altas horas da noite, depois de eu ter regressado de Maringue, e me perguntou , num tom algo preocupado: «senhor historiador, qual seria a sua atitude se os guerrilheiros da Renamo lhe endereçassem um convite?». Respondi-lhe calmamente: «aceitá-lo-ia imediatamente. Fiz um compromisso pessoal de que irei até ao fim de Gorongosa. Irei a Satungira, porque quero apresentar todos os factos com conhecimento de causa». E aí, o meu ajudante disse-me: «aí fora estão eles». Naquele momento, todos baixaram os rostos, menos eu. Ninguém conceberia nunca que um simples Historiador e não Jornalista, que carrega o fardo menos pesado e menos responsabilidade no que diz respeito à questão da guerra e da paz e até das notícias, fosse declarar estar pronto a encontrar-se com aqueles homens enquanto ainda nos encontrávamos em guerra. Sai e saudei-os despreocupadamente: «Sou Historiador, trabalho para a Universidade Pedagógica de Moçambique. Vim a Gorongosa, a antiga capital da guerrilha. Sei que vocês não desejam a guerra, mas os frutos da paz. Vim de Macodza, uma terra angustiada e sofredora cujo povo, desde há mais de 9 meses, não conheceu um único mês, uma única semana, um único dia, uma única hora, em que mães não tenham chorado pelos seus filhos e pelos filhos de seus vizinhos. Neste ponto, gostaria de ir à questão principal que me levou a vir a esta terra rica em tudo: como poderemos conseguir uma paz duradoura baseada na honestidades das intenções? E fiz outras perguntas interessantes! E tenho muito orgulho em visitar as zonas afectadas e conversar com todos, sem receio. Há 22 anos, dizia-se com orgulho: a guerra acabou. Hoje, no mundo da liberdade, diz-se com apreensão: queremos a paz.


Aqueles homens mostram-se agastados com a sua condição de vida e esperam, tal como o meu amigo morto, que a guerra termine: «nós também morremos» disse-me um deles para o outro concluir que «os números das nossas baixas não são revelados a mando dos nossos comandantes». Aqueles homens confiam no Governo que reconhecem e esperam dele uma resposta capaz de devolver-lhes a dignidade. Enquanto conversavamos, apareceu-me uma miúda que disse ter sido violada por um homem de armas e viu o seu noivado terminado, porque o outro não quis compreender a violência a que a companheira fora vítima. No meio deles perdi lágrimas, não de tristeza pelas histórias contadas mas, por ver-me incapaz de pôr fim às hostilidades para que os filhos deles e os filhos dos seus filhos não voltem a sentir o doloroso custo da guerra: a violência e o terror. Chorei por ver-me incapaz de proteger quem quer que fosse e aliviar a alma e as dolorosas memórias que os atormentam. Apenas rezei na esperança de uma paz futura próxima, convicto de que nós, moçambicanos de todas as cores políticas, estamos destinados a viver juntos no mesmo solo, na mesma terra. Em Canda, vi soldados que regressaram das batalhas, manchados de sangue. E conversei com alguns deles, com aqueles que viram os seus melhores amigos serem mortos à sua frente, pelas mãos da Renamo. Até trocamos contactos. Também vi os guerrilheiros da Renamo que assistiram aos funerais de seus familiares e não conseguiam olhar os presentes nos seus olhos. Fui de Maringue, uma terra onde os pais enterram os filhos, onde a comida apodrece no celeiro enquanto o dono passa fome no mato. E de lá tive que carregar na memória um aviso feito por um guerrilheiro: «não queremos cercar a Frelimo nem queremos ser cercados por mísseis destrutivos prontos a serem lançados, nem pelos projécteis do rancor e do ódio quando a guerra acabar».


O que me impressionou em ambos os beligerantes e sobreviventes da catastrofe é que não possuem desejo de vingança. Apenas obedecem ordens. Não guardam ódio uns contra outros porque acreditam que todos são pessoas – pessoas que querem construir um lar, plantar uma árvore, amar e viver ao lado daqueles que lhes tiraram a vida de amigos, como seres humanos. Os soldados dão uma oportunidade à paz e dizem repetidamente: esperamos para que chegue o dia em que todos nós digamos adeus às armas. É verdade! Eles desejam abrir um novo capítulo no triste livro de suas vidas em comum com aqueles que retiraram a vida de seus melhores amigos. Os guerrilheiros da Renamo desejam um capítulo de reconhecimento mútuo, de boa vizinhança, de respeito mútuo, de compreensão. Por aquilo que vi nos integrantes do exército, a sua força interior e os seus elevados valores morais têm sido os correctos durante todo o tempo em que ficam ali. Não é por acaso que as pessoas, sempre que têm oportunidade, fogem da Renamo ao encontro deles. São valores retirados do livro dos livros. Num deles, lê-se: «há um tempo para tudo o que acontece sob o firmamento: uma hora para nascer e uma hora para morrer... uma hora para matar e uma hora para sarar as feridas, uma hora para odiar e uma hora para amar, uma hora para a guerra e uma hora para a paz. Com os estrondos das armas na minha memória, penso que chegou a hora da paz. Para aqueles lares já destruídos, acredito, espero e rezo para que os desenvolvimentos do que acontece na Joaquim Chissano tragam uma mensagem de redenção para todos nós e que a paz chegue aos seus lares. Temos que enfrentar a realidade com coragem porque a questão que nos arrastou de escaramuças em escaramuças, de vítimas para mais vítimas, até ambos chegarmos hoje à beira de um horrível precipício e um desastre aterrador é esta Renamo Armada. E, se o Estado Moçambicano quiser que esta situação continue por mais tempo assim será, a menos que, juntos, agarremos esta oportunidade e desarmar a Renamo já, para uma paz duradoura baseada na honestidade das intenções. Na tradição chewa, é costume pedir licença com a palavra Zikomo. Com a vossa permissão, homens de paz, concluirei com as palavras retiradas da tradição dos meus antepassados e recitada diariamente quando se está prestes a fazer um pedido e o meu pedido é a paz: Zikomo.