terça-feira, 8 de março de 2016

Sobre os Patrões Estrangeiros da Renamo

Uma Crónica do Jornalista Fernando Lima, a 2 de Outubro de 1981, ajuda a compreender as redes iniciais de apoio ao movimento, a sua transferência da Rodésia para África do Sul, bem como o seu modus operandi. 

Transcrição de Eusébio A. P. Gwembe

RAS: O «MNR» ou mais uma face da agressão (Por Fernando Lima)

De que forma se articula a actuação dos bandos armados contra-revolucionários como o auto-intitulado «Movimento Nacional de Resistência» no interior de Moçambique, com a estratégia geral de desestabilização traçada pela África do Sul nesta zona do continente? As ligações entre o «MNR» e Pretória, não são de agora. Conheceram no entanto uma certa intensificação após a vitória eleitoral da ZANU no Zimbabwe, santuário inicial do «MNR». Antigos oficiais da segurança rodesiana, clamam para si a responsabilidade da criação da resistência - tornada corpórea com o concurso de «desesperados setembristas» recrutados na África do Sul, Rodésia e Portugal, elementos das tropas especiais de intervenção do exército colonial, dos grupos paramilitares repressivos, da polícia política fascista, de desertores da Frelimo e das FPLM.

A «inteligência» rodesiana assessorada por Pretória, constituiu este grupo de agressão operacional, na perspectiva de persuadir o governo moçambicano, a moderar o apoio à luta nacionalista do Zimbabwe, que em 1976 ganhava um novo ímpeto. Da mesma forma procedem as novas entidades de tutela, banalizadas pelo vigor das cada vez mais audaciosas operações do ANC. Em 1979, as actividades destes grupos fazia-se sentir nas províncias de Manica, Sofala, Tete e Zambézia. Aqui, o apoio era proveniente do Malawi, onde é conhecido o espaço de influência de uma das personalidades chaves do «dossier Resistência» - o industrial português Jorge Jardim, estabelecido actualmente no Gabão. Com a assinatura dos acordos de Lancaster House, o «MNR» corria o risco de ficar sem patrono. As próprias autoridades inglesas encarregadas do processo de transição, exerceram pressões sobre o aparelho rodesiano para o desmantelamento da «operação MNR», incluindo a programação da «Voz da África Livre», posta no ar a partir de emissores instalados em Gwero, Fort Victoria e Untali.

Os ingleses insistem que não se trata de qualquer movimento de carácter autonomista, como pretendiam os rodesianos maquilhar a operação. A este respeito, são hoje conhecidos pormenores relacionados com o ataque aos depósitos de combustível nos arredores da Beira. Esta acção que na altura havia sido reivindicada pelo MNR, foi executada por comando mercenário sob direcção rodesiana. Como represália ao ataque nacionalista contra os reservatórios de Salisbúria. O guia da operação, um moçambicano, foi friamente abatido junto ao local da operação, envergando uniforme militar profusamente decorado com insígnias do «MNR». No início de 1980 são rapidamente encetados contactos com sectores sul-africanos, tendo em vista a adequação às novas circunstâncias criadas. A África do Sul recebia àquela altura, um contingente migratório de referências pouco saudáveis - selous acouts. Os auxiliare de Muzorewa e uma autêntica aguarela de nacionalidades, englobando «mão-de-obra» mercenária momentaneamente sem emprego. É a partir destas unidades que fermentaram e fermentam planos bélicos. Elas constituem o lastro indispensável a alternativas de poder no Zimbabwe, que não tenham o nome de Mugabe. Deste meio saem também instrutores e novos elementos para as fileiras do «MNR», conforme comprovam inúmeras declarações de bandoleiros capturados pelas FPLM.

No plano operacional, os grupos mercenarizados do MNR desempenham o papel atribuído pela estratégia militar racista contra a RPM (não é estranho que atentados contra fontes energéticas na RAS, correspondam a sabotagem de postes eléctricos e linhas de alta tensão no centro de Moçambique). A esta actividade está adstrita a procura de sensibilidades no exterior do continente, envolvendo movimentações nos meios conservadores e saudosistas de Lisboa, Madrid, Paris e Londres, onde assumem maior realce figuras como Orlando Cristina, Evo Fernandes ou mesmo Domingos Arouca. A «Voz da Quizumba» voltou de novo a fazer-se ouvir através do éter, desta feita a partir do Transvaal, província fronteiriça com Moçambique e o Zimbabwe, onde estão estabelecidas as principais bases de insurrectos. Um cordão sanitário de tropas sul-africanas servidas por novos aeródromos de apoio, separa os campos das linhas de fronteira.

Aviões de transporte e helicópteros, fornecem o apoio logístico necessário às acções no interior do território moçambicano. É mencionado o sul do Zimbabwe, incluindo a área de Chipinga e Melselter como corredor de passagem para as actividades sul-africanas contra Moçambique. Este facto constitui certamente ponto de discussão entre as autoridades de segurança de Moçambique e do Zimbabwe nas consultas regulares que mantêm. A brigada de formação no Zimbabwe, com o auxílio de instrutores militares coreanos, poderá constituirum forte dispositivo de dissuação contra aventuras sul-africanas e forças por si instrumentalizadas. Segundo fontes do Ministério da Defesa, as operações de limpeza que decorrem agora em Mossurize têm como objectivo eliminar os focos acantonados na zona mais montanhosa da região. Em tempo de crise, o principal alvo dos elementos armados do «MNR» é a população que sofre represálias decorrentes da recusa em colaborar. A população retirada compulsivamente dos seus locais de habitação é conduzida para zonas mais remotas, onde deve fornecer a alimentação. Populares que ocupam cargos de responsabilidade política e administrativa e familiares, são por vezes mortos como «agentes comunistas», ou mutilados nos órgãos sexuais, orelhas e lábios.

Anteriormente à «Operação Leopardo», que culminou o ano passado com a destruição da base principal nas montanhas de Sitatonga, o grupos com maior espaço de movimentação, faziam operações contra Lojas do Povo, Cooperativas agrícolas, Machambas Estatais e Colectivas, postos administrativos e sedes políticas, comboios e viaturas de carga, nas estradas principais ligando as províncias do sul ao centro e norte do país. Um tipo de actividade que caracterizou a primeira fase dos ataques foram as acções contra centros de reeducação na zona central de Manica e Sofala, de onde eram retirados potenciais recrutas para o «MNR». A maior partedos elementos captrados o ano passado durante as grandes operações militares em Manica, eram jovens raptados junto da população, objectivamente utilizados como «carne de canhão». O armamento utilizado, semelhante a modelos do exército moçambicano, vem confirmar informações reveladas por um prestigioso semanário português, denunciando uma rede internacional de traficantes de armas com destino à África do Sul. Aliás, John Stockwel, ex-funcionário da espionagem americana e autor do livro «A CIA contra Angola», explica os mecanismos de aquisição de «armamento comunista» a Israel, para municiar a FNLA e a UNITA, sem comprometimentos escusados. 

Fonte: AIM, 02-10-1981

Carta dos Antigos Combatentes (25-10-1986)

Enquanto uma pergunta pairava no ar - a luz do artigo 57 da CRM - sobre quem seria o substituto de Samora Machel, no dia 25 de Outubro de 1986 saiu a «Carta dos Antigos Combatentes» dirigida ao Comité Central. Em 11 páginas, defendia, entre várias coisas, o emponderamento dos «moçambicanos originários» e o fim da guerra com a Renamo. Sugeria Chissano para Presidente, e outras individualidades e respectivos cargos ministeriais e/ou de comando. Questionava sobre as causas da morte de Machel e concluía que havia infiltrados. Para o momento em que vivemos, transcrevo as páginas 4-7.

Transcrição de Eusébio A. P. Gwembe
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Camaradas membros do Bureau Político:
Alberto Joaquim Chissano, Major-General
Alberto Joaquim Chipande, General do exército
Armando Emílio Guebuza, Tenente General
Mariano Matsinha, Major-General

Excelências e Compatriotas:
Os problemas de governação do País, que estamos a viver, têm as suas raízes no processo da Luta de Libertação Nacional. Nós, Antigos combatentes, durante a luta armada, estávamos acima de tudo preocupados com a guerra. Fazíamos a guerra com a arma na mão, enfrentando dia e noite a morte. Estávamos todos preocupados com a expulsão do colonialismo da nossa Terra. Assim fizemos e ganhamos a guerra justa.
Durante esse processo tínhamos contacto directo com as nossas populações. Nós víamos o sofrimento e a miséria dos nossos irmãos, irmãs, pais, mães e avôs. Cada um de nós prometia tirar o povo daquela miséria. Para isso a nossa única linguagem com o inimigo era a arma, o fusil. Ali, onde os colonos chamavam de mato, a nossa sensibilidade pelos problemas do Povo era profunda.
Veio a nossa querida independência. Nós, antigos combatentes, ficamos satisfeitos por ver que o nosso primeiro objectivo tinha sido conseguido. Agora faltava-nos conseguir os nossos objectivos em relação às populações. Pensávamos que os nossos irmãos de luta, escolhidos para a governação do País, iriam com mais responsabilidade criar condições para tal.
Os anos foram decorrendo e os problemas foram surgindo a todos os níveis: político, militar, económico e social. Vimos que o País se afundava cada vez mais. Tentamos compreender o que se passava. Olhamos para o passado e para o presente e constatamos esta triste realidade: a Frelimo tinha sido infiltrada. Essa infiltração, para nós que tínhamos feito a guerra, noite e dia, surpreendeu-nos. Procuramos saber como tinha sido possível isso? A nossa admiração não cessava porque, quanto mais tempo decorria mais infiltração víamos no seio do nosso poder político. Soubemos de outros irmãos que alguns dirigentes que tínhamos hoje na Frelimo, muitos deles tinham sido defensores do colonialismo, pertencendo à instituições como a Mocidade Portuguesa, etc. Tentamos falar, denunciar essas infiltrações, mas éramos logo chamados de pretos racistas, ignorantes, ultrapassados e ordinários. E quem nos dava esses nomes? Eram companheiros que apareceram na Frelimo como Camaradas de Luta ou infiltrados, após à Independência.
Compatriotas:
A experiência destes onze anos levou-nos à seguinte conclusão: os onze anos de experiência de governação dos destinos do País mostram-nos com maior evidência que não podemos continuar a confiar o poder político a pessoas que vivem como camaleão.
A morte de Sua Excia o Presidente da República surpreendeu-nos muito. Ouvimos e lemos aquilo que outros Países e personalidades estrangeiras falaram e falam sobre as causas dessa morte. Na realidade, as verdadeiras causas ainda não foram divulgadas oficialmente pelo nosso País. Todavia, Gostaríamos de fazer ver o seguinte:
a) Antes da morte de Sua Excia o Presidente da República, soubemos que a Nação tinha sido ameaçada pelos sul-africanos.
b) Recebemos através do Ministro da Segurança um comunicado em como os Sul-Africanos tinham infiltrado «Comandos» no nosso País.
c) O nosso próprio Ministro da Segurança apelou a toda a população que agudizasse a vigilância a fim de se neutralizar toda e qualquer tentativa do inimigo.
d) Poucos dias antes, a AIM divulgou internacionalmente, no passado dia 15 de Outubro, um artigo em que dava a conhecer que o Presidente Samora Machel era um dos alvos da Hierarquia Militar da África do Sul (cfr. Notícias, 21/10/1986, pág. 5).
Face a estas recomendações do nosso Ministro de Segurança, ficamos de boca aberta, espantados, ao sabermos que a aeronave que transportava Sua Excia o Presidente da República não tinha a tal segurança aguda de que, dias antes da morte, falara o Ministro da Segurança. Não teria sido também agudizar a vigilância, por parte do nosso Ministro de Segurança, se ele tivesse ordenado a escolta da aeronave presidencial durante o percurso de ida de Maputo até à fronteira com a Zâmbia, e de volta, da fronteira da Zâmbia até ao aeroporto de Mavalane? Isto não facilitaria a nossa actuação, socorro e localização da aeronave, seja qual fosse o motivo do embate da aeronave no solo? Também sabe-se que uma boa escolta do avião não permitiria que o avião fosse abatido, caso fosse esta a razão da queda do avião para além da escolta não o permitir, os sul-africanos não tentariam abater ou desviar a rota do avião, porque a escolta iria denunciar isso, pondo a África do Sul em dificuldades. O que significa esta falta de segurança aguda, por parte do nosso Ministro de Segurança? Onde ficou essa tal vigilância aguda? O Ministro, na qualidade de instância máxima para a segurança do Presidente, como se teria esquecido da tal vigilância aguda? O que significa isso? Desleixo? Irresponsabilidade? Falta de competência? Ignorância? É sobre estes problemas de que estamos a falar. É isto que nos faz dizer que houve companheiros que entraram para a Frelimo, em relação aos quais tínhamos e temos dificuldades e dúvidas, mas tentamos, de compreendê-los sempre. Agora estamos cansados e basta!
Compatriotas:
Analisemos; mais uma vez e friamente, o problema da Guerra. Nós somos um País que tem poucos anos de idade, mas julgamos que podemos perceber facilmente o que, hoje, se passa no Mundo. No caso concreto da guerra que estamos a suportar, poderíamos tentar compreender o seguinte:
Há países, neste mundo, que fabricam coisas muito boas para o bem estar e a felicidade das pessoas. Por exemplo, existe o fabrico e o comércio de automóveis, comboios, tractores, aviões, arroz, manteiga, queijo, mel, farinha, bicicletas, camiões, etc. Temos estes artigos que servem para o bem-estar e a felicidade das pessoas. Nós, moçambicanos, compramos ao estrangeiro muitas destas coisas. O problema de transportes públicos é resolvido comercializando com o estrangeiro outros produtos internos.
Mas existe outro tipo de comércio muito generalizado no mundo, mas pouco compreendido pelas pessoas e pelos povos. Queiramos ou não, Compatriotas, temos que saber e termos consciência de que esse comércio existe. É o comércio que não pode ser entendido por todos. É delicado e sofisticado. Para se fazer este comércio, os países detentores de arsenais de armas, têm que ter mercados, isto é, mercados onde possam vender essas armas. Os clientes, em geral, são Estados, Nações ou Movimentos de luta. Para um Estado ou Movimento se dedicar ao comércio de armas, tem que ter razões profundas. Hoje, encontramos certas que se justificam de várias maneiras: luta contra o colonialismo, contra o neocolonialismo, luta contra o Apartheid, contra o terrorismo, luta contra a expansão comunista, contra o capitalismo e o imperialismo, luta a favor duma religião em detrimento de uma outra, guerras motivadas por ideologias contrárias, etc.
Por isso, se analisarmos as guerras que existem neste planeta, veremos que em cada uma delas aparecem razões de sua existência, como as supracitadas. Vejamos a nossa guerra. Uns dizem tratar-se de uma luta contra os bandidos armados. Outros, que é uma luta contra o expansionismo comunista no mundo. Na verdade é que, no campo de batalha, encontramo-nos frente a frente, nós os moçambicanos. Estamos a lutar entre nós. Tudo isto para quê?
De facto, os que têm armas para vender, devem procurar compradores. Mas como se trata de comércio delicado, é necessário procurar ou criar mercados para o comércio de armas. Isto é bastante triste, Compatriotas, mas é a realidade.
Os que possuem o monopólio da venda de armas, não podem cruzar os braços, enquanto essas armas não saem.
Nós, neste momento, constituímos um bom mercado para a saída de armas, porque temos uma guerra interna. Os fornecedores de armas sabem perfeitamente que, para este nosso conflito, quanto mais tempo levar o conflito, mais comércio se faz. Sendo assim, pouco interesse têm de ver o conflito solucionado de forma pacífica. Pelo contrário, alimentam o conflito. Sob a capa de nos ajudar a combater o «inimigo», vão-nos retirando as riquezas para, quando as não tivermos, abandonar-nos e, nessa altura, eles farão acabar esta guerra, porque já não terão interesses económicos. Esta é a outra faceta da guerra. Esta guerra está empobrecendo o nosso país. Não nos enganemos mais! Enquanto não conseguirmos resolver pacificamente os nossos problemas internos - e só podemos ser nós a resolvê-los - estaremos sujeitos a ser clientes dos detentores de arsenais de armamento. Seremos divididos em duas equipas: cada uma com o seu treinador, que é, neste caso, o treinador-fornecedor de armas. Seja quem ele for. O nosso Povo estará a assistir e a suportar este jogo de vida ou morte! Estaremos a ser tratados como bonecas.
Nós, moçambicanos, temos que ter a coragem suficiente para resolvermos os nossos problemas internos e não devemos permitir que estrangeiros nos ponham em guerra seja para lutar contra o expansionismo comunista ou para lutar contra o capitalismo e imperialismo. Quem tira as vantagens e lucros da guerra são os que dela precisam para comercializar armas. Por conseguinte, à esses a guerra é-lhes vantajosa. Nós não temos armas para comercializar. Nós só ficamos com a morte e a miséria. Para o actual conflito interno que temos, devemos procurar e eliminar totalmente ingerências externas. Se o nosso conflito é alimentado por ideologia no nosso país, devemos saber que é chegado o momento de sermos adultos e não permitir que sejamos bonecas animadas.
Compatriotas:
Para finalizar, gostaríamos de fazer um apelo aos nossos dirigentes sobre este documento: que ele é apenas uma nossa opinião. Estamos convencidos de que esta nossa maneira sincera de ver o problema enquadra-se na tradição valorosa da Frelimo de crítica e auto-crítica.
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Nota - Os membros seniores do Potitburo eram: Marcelino dos Santos, Joaquim Chissano, Alberto Chipande, Armando Guebuza, Jorge Rebelo, Sebastião Mabote, Mariano Matsinhe, Jacinto Veloso, Mário Machungo, Óscar Monteiro.