terça-feira, 8 de março de 2016

Carta dos Antigos Combatentes (25-10-1986)

Enquanto uma pergunta pairava no ar - a luz do artigo 57 da CRM - sobre quem seria o substituto de Samora Machel, no dia 25 de Outubro de 1986 saiu a «Carta dos Antigos Combatentes» dirigida ao Comité Central. Em 11 páginas, defendia, entre várias coisas, o emponderamento dos «moçambicanos originários» e o fim da guerra com a Renamo. Sugeria Chissano para Presidente, e outras individualidades e respectivos cargos ministeriais e/ou de comando. Questionava sobre as causas da morte de Machel e concluía que havia infiltrados. Para o momento em que vivemos, transcrevo as páginas 4-7.

Transcrição de Eusébio A. P. Gwembe
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Camaradas membros do Bureau Político:
Alberto Joaquim Chissano, Major-General
Alberto Joaquim Chipande, General do exército
Armando Emílio Guebuza, Tenente General
Mariano Matsinha, Major-General

Excelências e Compatriotas:
Os problemas de governação do País, que estamos a viver, têm as suas raízes no processo da Luta de Libertação Nacional. Nós, Antigos combatentes, durante a luta armada, estávamos acima de tudo preocupados com a guerra. Fazíamos a guerra com a arma na mão, enfrentando dia e noite a morte. Estávamos todos preocupados com a expulsão do colonialismo da nossa Terra. Assim fizemos e ganhamos a guerra justa.
Durante esse processo tínhamos contacto directo com as nossas populações. Nós víamos o sofrimento e a miséria dos nossos irmãos, irmãs, pais, mães e avôs. Cada um de nós prometia tirar o povo daquela miséria. Para isso a nossa única linguagem com o inimigo era a arma, o fusil. Ali, onde os colonos chamavam de mato, a nossa sensibilidade pelos problemas do Povo era profunda.
Veio a nossa querida independência. Nós, antigos combatentes, ficamos satisfeitos por ver que o nosso primeiro objectivo tinha sido conseguido. Agora faltava-nos conseguir os nossos objectivos em relação às populações. Pensávamos que os nossos irmãos de luta, escolhidos para a governação do País, iriam com mais responsabilidade criar condições para tal.
Os anos foram decorrendo e os problemas foram surgindo a todos os níveis: político, militar, económico e social. Vimos que o País se afundava cada vez mais. Tentamos compreender o que se passava. Olhamos para o passado e para o presente e constatamos esta triste realidade: a Frelimo tinha sido infiltrada. Essa infiltração, para nós que tínhamos feito a guerra, noite e dia, surpreendeu-nos. Procuramos saber como tinha sido possível isso? A nossa admiração não cessava porque, quanto mais tempo decorria mais infiltração víamos no seio do nosso poder político. Soubemos de outros irmãos que alguns dirigentes que tínhamos hoje na Frelimo, muitos deles tinham sido defensores do colonialismo, pertencendo à instituições como a Mocidade Portuguesa, etc. Tentamos falar, denunciar essas infiltrações, mas éramos logo chamados de pretos racistas, ignorantes, ultrapassados e ordinários. E quem nos dava esses nomes? Eram companheiros que apareceram na Frelimo como Camaradas de Luta ou infiltrados, após à Independência.
Compatriotas:
A experiência destes onze anos levou-nos à seguinte conclusão: os onze anos de experiência de governação dos destinos do País mostram-nos com maior evidência que não podemos continuar a confiar o poder político a pessoas que vivem como camaleão.
A morte de Sua Excia o Presidente da República surpreendeu-nos muito. Ouvimos e lemos aquilo que outros Países e personalidades estrangeiras falaram e falam sobre as causas dessa morte. Na realidade, as verdadeiras causas ainda não foram divulgadas oficialmente pelo nosso País. Todavia, Gostaríamos de fazer ver o seguinte:
a) Antes da morte de Sua Excia o Presidente da República, soubemos que a Nação tinha sido ameaçada pelos sul-africanos.
b) Recebemos através do Ministro da Segurança um comunicado em como os Sul-Africanos tinham infiltrado «Comandos» no nosso País.
c) O nosso próprio Ministro da Segurança apelou a toda a população que agudizasse a vigilância a fim de se neutralizar toda e qualquer tentativa do inimigo.
d) Poucos dias antes, a AIM divulgou internacionalmente, no passado dia 15 de Outubro, um artigo em que dava a conhecer que o Presidente Samora Machel era um dos alvos da Hierarquia Militar da África do Sul (cfr. Notícias, 21/10/1986, pág. 5).
Face a estas recomendações do nosso Ministro de Segurança, ficamos de boca aberta, espantados, ao sabermos que a aeronave que transportava Sua Excia o Presidente da República não tinha a tal segurança aguda de que, dias antes da morte, falara o Ministro da Segurança. Não teria sido também agudizar a vigilância, por parte do nosso Ministro de Segurança, se ele tivesse ordenado a escolta da aeronave presidencial durante o percurso de ida de Maputo até à fronteira com a Zâmbia, e de volta, da fronteira da Zâmbia até ao aeroporto de Mavalane? Isto não facilitaria a nossa actuação, socorro e localização da aeronave, seja qual fosse o motivo do embate da aeronave no solo? Também sabe-se que uma boa escolta do avião não permitiria que o avião fosse abatido, caso fosse esta a razão da queda do avião para além da escolta não o permitir, os sul-africanos não tentariam abater ou desviar a rota do avião, porque a escolta iria denunciar isso, pondo a África do Sul em dificuldades. O que significa esta falta de segurança aguda, por parte do nosso Ministro de Segurança? Onde ficou essa tal vigilância aguda? O Ministro, na qualidade de instância máxima para a segurança do Presidente, como se teria esquecido da tal vigilância aguda? O que significa isso? Desleixo? Irresponsabilidade? Falta de competência? Ignorância? É sobre estes problemas de que estamos a falar. É isto que nos faz dizer que houve companheiros que entraram para a Frelimo, em relação aos quais tínhamos e temos dificuldades e dúvidas, mas tentamos, de compreendê-los sempre. Agora estamos cansados e basta!
Compatriotas:
Analisemos; mais uma vez e friamente, o problema da Guerra. Nós somos um País que tem poucos anos de idade, mas julgamos que podemos perceber facilmente o que, hoje, se passa no Mundo. No caso concreto da guerra que estamos a suportar, poderíamos tentar compreender o seguinte:
Há países, neste mundo, que fabricam coisas muito boas para o bem estar e a felicidade das pessoas. Por exemplo, existe o fabrico e o comércio de automóveis, comboios, tractores, aviões, arroz, manteiga, queijo, mel, farinha, bicicletas, camiões, etc. Temos estes artigos que servem para o bem-estar e a felicidade das pessoas. Nós, moçambicanos, compramos ao estrangeiro muitas destas coisas. O problema de transportes públicos é resolvido comercializando com o estrangeiro outros produtos internos.
Mas existe outro tipo de comércio muito generalizado no mundo, mas pouco compreendido pelas pessoas e pelos povos. Queiramos ou não, Compatriotas, temos que saber e termos consciência de que esse comércio existe. É o comércio que não pode ser entendido por todos. É delicado e sofisticado. Para se fazer este comércio, os países detentores de arsenais de armas, têm que ter mercados, isto é, mercados onde possam vender essas armas. Os clientes, em geral, são Estados, Nações ou Movimentos de luta. Para um Estado ou Movimento se dedicar ao comércio de armas, tem que ter razões profundas. Hoje, encontramos certas que se justificam de várias maneiras: luta contra o colonialismo, contra o neocolonialismo, luta contra o Apartheid, contra o terrorismo, luta contra a expansão comunista, contra o capitalismo e o imperialismo, luta a favor duma religião em detrimento de uma outra, guerras motivadas por ideologias contrárias, etc.
Por isso, se analisarmos as guerras que existem neste planeta, veremos que em cada uma delas aparecem razões de sua existência, como as supracitadas. Vejamos a nossa guerra. Uns dizem tratar-se de uma luta contra os bandidos armados. Outros, que é uma luta contra o expansionismo comunista no mundo. Na verdade é que, no campo de batalha, encontramo-nos frente a frente, nós os moçambicanos. Estamos a lutar entre nós. Tudo isto para quê?
De facto, os que têm armas para vender, devem procurar compradores. Mas como se trata de comércio delicado, é necessário procurar ou criar mercados para o comércio de armas. Isto é bastante triste, Compatriotas, mas é a realidade.
Os que possuem o monopólio da venda de armas, não podem cruzar os braços, enquanto essas armas não saem.
Nós, neste momento, constituímos um bom mercado para a saída de armas, porque temos uma guerra interna. Os fornecedores de armas sabem perfeitamente que, para este nosso conflito, quanto mais tempo levar o conflito, mais comércio se faz. Sendo assim, pouco interesse têm de ver o conflito solucionado de forma pacífica. Pelo contrário, alimentam o conflito. Sob a capa de nos ajudar a combater o «inimigo», vão-nos retirando as riquezas para, quando as não tivermos, abandonar-nos e, nessa altura, eles farão acabar esta guerra, porque já não terão interesses económicos. Esta é a outra faceta da guerra. Esta guerra está empobrecendo o nosso país. Não nos enganemos mais! Enquanto não conseguirmos resolver pacificamente os nossos problemas internos - e só podemos ser nós a resolvê-los - estaremos sujeitos a ser clientes dos detentores de arsenais de armamento. Seremos divididos em duas equipas: cada uma com o seu treinador, que é, neste caso, o treinador-fornecedor de armas. Seja quem ele for. O nosso Povo estará a assistir e a suportar este jogo de vida ou morte! Estaremos a ser tratados como bonecas.
Nós, moçambicanos, temos que ter a coragem suficiente para resolvermos os nossos problemas internos e não devemos permitir que estrangeiros nos ponham em guerra seja para lutar contra o expansionismo comunista ou para lutar contra o capitalismo e imperialismo. Quem tira as vantagens e lucros da guerra são os que dela precisam para comercializar armas. Por conseguinte, à esses a guerra é-lhes vantajosa. Nós não temos armas para comercializar. Nós só ficamos com a morte e a miséria. Para o actual conflito interno que temos, devemos procurar e eliminar totalmente ingerências externas. Se o nosso conflito é alimentado por ideologia no nosso país, devemos saber que é chegado o momento de sermos adultos e não permitir que sejamos bonecas animadas.
Compatriotas:
Para finalizar, gostaríamos de fazer um apelo aos nossos dirigentes sobre este documento: que ele é apenas uma nossa opinião. Estamos convencidos de que esta nossa maneira sincera de ver o problema enquadra-se na tradição valorosa da Frelimo de crítica e auto-crítica.
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Nota - Os membros seniores do Potitburo eram: Marcelino dos Santos, Joaquim Chissano, Alberto Chipande, Armando Guebuza, Jorge Rebelo, Sebastião Mabote, Mariano Matsinhe, Jacinto Veloso, Mário Machungo, Óscar Monteiro.

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