Poderia começar por falar-me um pouco da sua infância, do ambiente
onde nasceu e cresceu.
- Nampula era então, há 36 anos, um burgo simples. A minha
infância foi banal, embora começasse a sentir desde muito nova que alguma coisa
estava mal na sociedade em que vivia. Pelas experiências que tive, pela
discriminação que sentia. Papá pôs-me a estudar numa escola particular para me
subtrair a um certo número de medidas discriminatórias que existiam, na época,
no ensino oficial. Havia também um conjunto de regras sociais a que nos
tínhamos que submeter. As raparigas não podiam brincar com rapazes, por exemplo
e isso confundia-me. Frequentemente, Papá, que era um simples “choffeur”,
apanhava-me no meio dos criados e ralhava.
No meio dos criados? Tinha criados?
- Sim, toda a gente tinha. Chegou a altura de ir para o liceu, e
ai uma vez mais o Papá preferiu mandar-me para um colégio. Mas a irmã recusou a
minha entrada. Pela primeira vez na história do lugar aparecia uma negra a
querer fazer o liceu. E o Papá, que entretanto se tornou “choffeur” do bispo,
falou com este e acabou por ser por sua influência que fui admitida. Fiz assim
o primeiro e o segundo anos, mas em condições psicológicas péssimas: o dia a
dia, a recusa na matricula, tal e tal.
A certa altura o Papá disse: “bem, isto está mesmo tão difícil que
o melhor é ires para a metrópole, mais a tua irmã. E escreveu para o Colégio de
Santa Cruz, em Coimbra, para onde acabei por entrar, graças a umas facilidades
que obtivemos através do Ministério do Ultramar, e onde fizemos o sétimo ano,
eu e a Nina.
- A Senhora foi uma negra que pôde estudar até à universidade.
Isso é raro.
- Sim, foi um cometa, o meu caso.
- É Capaz de dizer-me se essa situação ainda se mantém?
- Não. Absolutamente não.
Saberá dizer-me quantos estudantes negros acabaram o sétimo
ano em 1972-73 nos diversos liceus de Moçambique?
Não sei. Mas sei que é um número superior ao que existia no
meu tempo.
Sim, naturalmente, mas não tem uma ideia?
- Não sei, com franqueza. Isso mostra a minha ignorância na matéria.
E na Universidade, qual é a frequência?
- É grande. Agora formaram-se três médicos. Pode dizer: é
pouco. Pois é, mas antes não havia nada disso.
Tem muitos colegas negros, a senhora?
- Eu sou a única no meu Liceu.
- E noutros liceus?
- Há, isso há.
- Numerosos?
Numerosos não?
- E na universidade, tem muitos colegas?
- Só conheço um professor de românicas.
…………………………………………..
Gostaria que falássemos um pouco de si. Importa-se?
Mais?
- Sente-se cansada?
- Diga-la, diga la o que é que quer! Mas eu depois QUERO ler
o que vai escrever, sabe?
- Pode confiar, o gravador não engana e eu limitar-me-ei a pôr
no papel as suas afirmações e as minhas perguntas.
- Bom… portanto a senhora regressou a Portugal em 1971. Qual
era a sua situação em paris, na altura?.
Trabalhava, era secretaria na Radiotelevisão Francesa…….