quarta-feira, 8 de abril de 2015

Os primeiros tendões da paz moçambican

Nampula, 17-09-2013

A Segunda Guerra Mundial foi o resultado de uma paz mal feita no final da Primeira. A Itália, mesmo tendo juntado o seu destino aos dos Aliados, depois de uma vitória comum que lhe custou seiscentos mil mortos, quatrocentos mil desaparecidos e um milhão de feridos, quando se discutia a paz à volta da mesa, só recebeu as migalhas de um rico espólio colonial. E a Alemanha, derrotada, viu suas possessões africanas a serem entregues a outras potências e a cair num colapso, quando era um país de grandeza material. Quando os preparativos para a Segunda Guerra davam mostras as mentes magoadas já estavam dispostas a receber o inevitável. Entre o fim da Primeira Guerra Mundial (1918) e o início da Segunda Guerra Mundial (1939) passaram 21 anos, o mesmo período que nos separa do Acordo Geral de Paz (1992) a estas escaramuças de 2013. Um certo dia, Prof. Dr. Elísio Macamo escreveu que a Renamo não perdeu a guerra, mas pode ter perdido a Paz. Estas pequenas comparações de contraste servem para ilustrar o ambiente sombrio por que estamos a passar e confirmar a tese de que a História se repete.
Aquando do tratado de Roma, em 1992, havia grandes esperanças e uma certeza absoluta de que a guerra tinha acabado e de que o país se tornara estável numa verdadeira e genuína reconciliação. Não vejo, nem sinto essa mesma confiança, nem sequer as mesmas esperanças, no turbulento país de hoje. É por ter a certeza de que ainda temos o nosso destino nas mãos, nas nossas próprias mãos, e que temos o poder de salvaguardar o futuro, que senti o dever de falar agora, quando a ocasião e a oportunidade se apresentaram. Vou dizer o que tenho dito, repetidamente! Não acredito que a Renamo deseje a guerra. O que ela deseja são os frutos da paz e a expansão ilimitada da sua influência. Mas o que aqui devemos considerar, enquanto ainda há tempo, é a prevenção permanente da guerra e o estabelecimento, o mais rapidamente possível, de condições de liberdade e democracia. As dificuldades e os perigos de hoje não serão eliminados se ficarmos à espera para ver o que acontece, nem praticando uma política de apaziguamento. É tempo de o Governo agir na busca de um interlocutor válido, na capaz de encetar condições de diálogo com a ala militar. Mas o mais importante é localizar o próprio Dhlakama, enquanto há tempo. Não se pode esperar que ele reapareça através dos meios de comunicação estrangeiros, o que poderá lançar desespero a todos nós e reanimar o espírito de vingança dos seus homens. O que é necessário é um acordo com a Renamo militarizada, e quanto mais for adiado, mais difícil será de o obter e maiores se tornarão os perigos que nos ameaçam. Pelas mortes de civis e militares, de Abril a esta parte, já não é válida a velha doutrina de que os atacantes irão gastar suas munições e render-se-ão ou seja, o exército tudo fará para devolver a paz aos moçambicanos. Vivemos um problema político e como tal deve ser resolvido por vias políticas e nunca por vias militares.
Não nos podemos dar ao luxo, se o pudermos evitar, de ter pouco espaço de manobra, dando azo à tentação de teste de força. Não podemos deixar fugirem os 21 anos tão importantes nos quais criamos sonhos de prosperidade. Poderemos ser todos, o povo, o Governo e a Renamo, vítimas de uma catástrofe. No passado, vi pessoas a aproximarem-se de nós e a avisar, mas ninguém lhes prestou atenção. Em 1988, o Papa João Paulo II, aquando da sua visita a este país, dizia que «a História não é um mero resultado de fatalidade; ela é algo feito também pelas providências humanas. A História deste momento ficará marcada por aquilo que nós, Igreja, Autoridades Políticas, Forças Religiosas, Forças Sociais e Comunidade Internacional, fizemos ou deixamos de fazer pela paz e pelo desenvolvimento de Moçambique. Parece impor-se enveredar pelo caminho do diálogo para a reconciliação, que faça cessar o espargimento do sangue do irmão e purifique o ambiente do ódio e do desamor». Mas, ao invés de escutar-lhe a mensagem, em 17 de Julho de 1989, o então Presidente, Joaquim Chissano, questionava «Quem é, realmente, a Renamo e quais as suas intenções? Os bispos não constituem uma equipa de mediação mas sim de uma exploração para nos ajudar, em primeiro lugar, a decifrar as intenções de gente que tinha começado a disparar mesmo antes de falar. Porque a luta da Renamo não nasce nem de uma cisão do partido ou reivindicações não obtidas. São violências, massacres e basta». Hoje, em 2013, sabemos das reivindicações da Renamo, algumas das quais, tão justas e benéficas mesmo para aqueles que as repudiam recorrendo à retórica. Foi precisamente por ter compreendido que a retórica em nada contribuiu que em 1990 Chissano afirmou (veja Tempo, 25.03.1990), nos EUA: «Informei o Presidente Bush da decisão do meu Governo de entrar em negociações directas com a Renamo para pôr termo ao sofrimento do nosso povo. O meu governo está pronto para iniciar o diálogo a qualquer altura. Se não estivéssemos ocupados com a independência da Namíbia poderia dizer que estamos prontos agora mesmo». Até ao ano de 1988, ou mesmo antes, Moçambique poderia ter sido salvo do horrível destino que lhe coube, e todos nós poderíamos ter sido poupados às misérias que a guerra lançou sobre a nação e sobre cada uma de nossas famílias.
Nunca houve, na história, uma guerra mais fácil de evitar actuando atempadamente do que a que acabou de desolar o país por 16 anos, sem se disparar um único tiro, e Moçambique poderia ser hoje poderoso, próspero e honrado; mas ninguém quis ouvir e fomos todos sugados, um a um, pelo terrível turbilhão. A decisão será nossa, mas de modo nenhum podemos deixar que aquilo volte a acontecer. Só o conseguiremos se agora, em 2013, o mais tardar até 2014, chegarmos a um bom entendimento com a Renamo militarizada, e mantendo esse bom entendimento por muitos anos de paz através da nossa força e determinação nacionais. É preciso, senão mesmo necessário, que o Governo de Moçambique declare amnistia geral aos guerrilheiros da Renamo e, em nome da paz, organize o seu recenseamento geral para se inteirar acerca de suas condições de vida, no sentido de dar-lhes a vida condigna na sociedade. Eles não são outros; são moçambicanos quanto o somos todos e não possuem outro Moçambique onde possam fixar residência. Ora, enquanto pretendermos que a sua residência seja o túmulo, pela lei da sobrevivência, tudo farão para protegerem a própria vida e o país pagará alto preço. Não nos podemos considerar livres se um só moçambicano estiver aprisionado nas matas da Gorongosa, de Moxungue, de Rapale e de Canda, sem esperança quanto ao seu futuro. Que cessem as perseguições aos renamistas armados, em nome da paz e chamemos aos até aqui renegados, à mesa de negociações. A paz é possível, porque os que tomaram a decisão para estas escaramuças na paz também têm o poder de as fazer cessar na guerra. O diálogo com quem não dispara, como até aqui aconteceu, poderá surtir poucos efeitos e exacerbar as tenções e a ansiedade. Gostaria de dizer aos meus colegas que estas escaramuças são as últimam. Esta é a primeira solução que respeitosamente proponho nesta alocução, que intitulei «os primeiros tendões da paz».
Eusébio A. P. Gwembe 
Historiador