Quando lerem a obra de um
historiador, prestem muita atenção à sua voz. Se não ouvirem nada, é porque são
surdos ou porque o vosso historiador é um perfeito maçador. Não, na verdade, os
factos não se assemelham aos peixes expostos na montra do comerciante.
Assemelham-se aos peixes que nadam no oceano imenso e muitas vezes inacessível;
o que o historiador apanhará depende em parte do acaso, mas sobretudo da região
do oceano que tiver escolhido para a sua pesca e do isco de que se servir.
Estes três factores são, evidentemente, determinados pelo tipo de peixe que se
propõe apanhar. Em geral, o historiador obterá os factos que deseja encontrar.
História significa interpretação. De facto, se, pondo Sir George Clarck de
pernas para o ar, eu reconhecesse que a História é um «duro caroço de
interpretação, rodeado de uma polpa de factos discutíveis», a minha asserção
seria incontestavelmente unilateral e induziria em erro, mas menos – arrisco
esta tese – do que a asserção original[1].
Alguns intelectuais e filhos da oposição
ao regime fermentam prodigiosamente com os olhos virados para o poder e os
lamentos diários têm-lhes surgido como um astro brilhando no meio de uma noite
profunda. Empreenderam um enorme trabalho de ideias não apenas políticas, mas
também históricas auxiliando-se no método do livre exame de expressão e
pensamento julgando-se capazes de abalar o regime até aos alicerces. Todavia, os factos mostram que o
regime conta com uma arma temível – o povo – por meio da qual é capaz de
sabotar o edifício corroído pelas velhas crenças numa alternância política via
milagre, por vezes, fundamentada na desvalorização da História dos outros. Tudo
se discutiu em profundidade, sem poupar nenhum traço que a geração 25 de
Setembro tem como legado para deixar à posterioridade. Assistimos ao pôr em
causa todo o processo da luta pela libertação, com promessas de reescrita da
sua HISTÓRIA ALTERNATIVA à luz das imaginações do raciocínio do século XXI e
insistentes apelos da substituição de símbolos presentes na nossa bandeira.
Nisto, deram início à uma
campanha de desinformação histórica promovendo uma propaganda subtil que tem
tornado público o perigosíssimo adágio segundo o qual «a História conforme
narrada, pelos que detêm o poder e por amigos destes, deve ser encarada com
máxima cautela» porque é, à partida, enganosa, omissa e mentira. Começaram a
definir a sua linha de pensamento que marca uma orientação nociva para a
própria História por privilegiar o Homem ignorando o tempo, por sinal, o
verdadeiro amortecedor da História. Nos seus dizeres, há provas
materiais do ódio cego votado à Frelimo identificando-se, para cúmulo, com
posições anti-democráticas e intolerantes. A título de curiosidade, um
partidário fervoroso da oposição afirmou com S.I.M. maiúsculo que todos os que
votam na Frelimo são ignorantes. Essa afirmação, hoje banal, mostra o tipo de
reservistas com que a nossa oposição conta, prontos a serem introduzidos no
arsenal dos seus opinion makers. O que me força a redigir estas
linhas é o facto de, no TUDO SERVE, estarem presentes argumentos que extrapolam
os limites de simples vias justificativas para se chegar ao poder político, ao
abarcar o campo da História que é uma das pré-condições para que o povo se
sinta UNIDO. Pelo contrário, ela tem sido usada como arma de divisão!
Trata-se de um esforço bastante
extensivo e que faria presumir um trabalho exaustivo se não fosse em grande
parte a repetição de comentários dispersamente localizáveis, feitos por pessoas
magoadas no processo da luta e, desde logo, também de credibilidade suspeita
para a reescrita da História. De resto, elucidam-nos de que tomaram como ponto
de partida e de referência a necessidade de reconciliação nacional. Que astutos! Que astúcia! Estou a
pensar no diálogo entre o Diabo com Jesus «transforme essa pedra em pão» cujo
conteúdo contém manhas consagradas a esta temática. Com ódio, num tom
subjectivo, procuram demonstrar que a morte de Mondlane e quase de todos os
heróis conhecidos, foi uma conspiração urdida a partir do interior da própria
Frelimo, para, de seguida, proclamá-los heróis. Descrevendo pormenorizadamente a situação de então, mais
particularmente após a morte de Mondlane, citam vários exemplos próprios de uma
revolução, apesar do seu carácter de veracidade ser contestável. Omitindo o
lado sombrio dos coutros pretendem fazer crer que eles foram
vítimas, em desprezo às várias almas que, pelas decisões adiadas ou divisões
mal orquestradas por aqueles, foram tombando no campo da batalha, um por um. Sem justificarem as sucessivas
inconsistências de muitos deles em terem um pensamento fixo, acrescentam, porém,
os representantes desta discórdia, que a História Oficial se encontra em muitos
pontos desactualizada, especificando verificar-se esse facto no que diz
respeito aos «verdadeiros heróis», uma mostra de que pretendem destruir todos
os fundamentos da nação moçambicana. E é pena que não haja um objectivo
precioso para se identificarem, na integridade das suas intenções, as coordenadas
exactas do lugar geométrico em que se encontram os adversários do regime.
No meio de tudo isso, os alunos, do
primário ao secundário e até universitário, ficam confusos por ter que
enfrentar a História Oficial na Escola a qual não pode ser complementada em
casa, porque o encarregado, soprado por informações flutuantes de proveniência com
sede de poder, diz que aquela é falsa. O mesmo se diga da confusão no professor
que tem de responder conforme as inquietações dos alunos, sob risco de ser
chamado de ignorante. Paira, portanto, uma nuvem de incerteza sobre os
fundamentos ideológicos da posição assumida e o impacto disso no Ensino. Tornou-se inevitável uma proposta,
não uma dessas de que a História dos Jornais nos oferece muitos
exemplos, propostas superficiais e unilaterais, que apenas podem substituir uns
factos por outros, mas profunda, radical, inclusiva que terá de
descer até às entranhas das suas convicções no seu todo para aí operar a
mudança científica desejada. Soubemos, quando muito, que
particularmente se orgulham de desprezar a história da Frelimo, que
infelizmente também é a deles, a uma regra de constância e se abonam de uma
larga tradição de insultos que, segundo dizem, lhes têm acarretado dissabores
de vulto no Aparelho do Estado. No entanto, a dificuldade com que, no nosso
tempo, adoptam e rejeitam a História Oficial, revela que é necessário um certo
ecletismo, para evitar lançar os jovens aos argumentos desprovidos de
estabilidade e coerência.
Fazem os autores dos artigos
populistas questão fechada de serem homens livres que pretendem mudar o rumo
dos acontecimentos e é natural que isto explique a naturalidade com que não
analisam o impacto dos seus pronunciamentos e as próprias soluções que
preconizam. Reescrever a História não significa negar o que já foi escrito,
pelo contrário, é enriquece-la, é corrigi-la, é explica-la à luz das novas
concepções ditadas pelo tempo. Todos parecem convertidos de quererem a outra
História que não a conhecem, movidos pelos desejos políticos atávicos. Sublinhando essa característica
do seu comportamento político, os oposicionistas julgam beneficiar da influência
favorável da verdade e dos ventos da História. O surgimento destas posições
constitui uma contribuição interessante para a questão da pertinência de reescrever
a História, onde tais problemas que se têm levantado façam parte e sejam
racionalmente justificados. No exemplo que nos ocupa, a decisão plausível seria
a escrita da História das Correntes em Torno da História de Moçambique onde
todas as versões até aqui avançadas façam parte, de modo a denunciar o carácter
egocêntrico que esta área tem tomado, nos últimos tempos.
Ignorar o papel do tempo como
historicamente sem importância tentando julgar o passado à luz das frustrações
presentes constitui erro, sobretudo quando começam a pôr em evidência o papel
dos seus ídolos que não encontram fundamentos sólidos quanto ao papel
desempenhado. Se as suas investigações, no caso de as terem empreendido,
tivessem confirmado que estes indivíduos deram contributo merecedor de registo
nos anais da História Oficial, isso não teria diminuído em nada Revolução e não
a teria reduzido apenas ao problema de conspiração, tal como não modificaria a
nossa opinião decididamente suspeita sobre a obra de alguns combatentes da primeira gesta. Mondlane completa de certa
maneira a vitória. A sua concepção apocalíptica, levada até ao misticismo,
condu-lo na sua «Lutar por Moçambique» a uma maneira singular de conceber os
factores da vitória: a Unidade. Só uns poucos podiam fazer o trabalho «sujo» por
razões óbvias que consistia em rejeitar a pessoa de Mondlane desde o começo. Só
uns poucos podiam dominar as tendências de união com a refundação de outros movimentos paralelos; só uns poucos
podiam dominar as forças centrífugas da Frelimo, reforçando assim o tribalismo e
a divisão.
Pedro MAHRIC
[1] E. H. Carr. What is History, op.
cit. p. 18