terça-feira, 23 de abril de 2013

Reescrever a História ao serviço da Política?


Quando lerem a obra de um historiador, prestem muita atenção à sua voz. Se não ouvirem nada, é porque são surdos ou porque o vosso historiador é um perfeito maçador. Não, na verdade, os factos não se assemelham aos peixes expostos na montra do comerciante. Assemelham-se aos peixes que nadam no oceano imenso e muitas vezes inacessível; o que o historiador apanhará depende em parte do acaso, mas sobretudo da região do oceano que tiver escolhido para a sua pesca e do isco de que se servir. Estes três factores são, evidentemente, determinados pelo tipo de peixe que se propõe apanhar. Em geral, o historiador obterá os factos que deseja encontrar. História significa interpretação. De facto, se, pondo Sir George Clarck de pernas para o ar, eu reconhecesse que a História é um «duro caroço de interpretação, rodeado de uma polpa de factos discutíveis», a minha asserção seria incontestavelmente unilateral e induziria em erro, mas menos – arrisco esta tese – do que a asserção original[1]. 

Alguns intelectuais e filhos da oposição ao regime fermentam prodigiosamente com os olhos virados para o poder e os lamentos diários têm-lhes surgido como um astro brilhando no meio de uma noite profunda. Empreenderam um enorme trabalho de ideias não apenas políticas, mas também históricas auxiliando-se no método do livre exame de expressão e pensamento julgando-se capazes de abalar o regime até aos alicerces. Todavia, os factos mostram que o regime conta com uma arma temível – o povo – por meio da qual é capaz de sabotar o edifício corroído pelas velhas crenças numa alternância política via milagre, por vezes, fundamentada na desvalorização da História dos outros. Tudo se discutiu em profundidade, sem poupar nenhum traço que a geração 25 de Setembro tem como legado para deixar à posterioridade. Assistimos ao pôr em causa todo o processo da luta pela libertação, com promessas de reescrita da sua HISTÓRIA ALTERNATIVA à luz das imaginações do raciocínio do século XXI e insistentes apelos da substituição de símbolos presentes na nossa bandeira.

Nisto, deram início à uma campanha de desinformação histórica promovendo uma propaganda subtil que tem tornado público o perigosíssimo adágio segundo o qual «a História conforme narrada, pelos que detêm o poder e por amigos destes, deve ser encarada com máxima cautela» porque é, à partida, enganosa, omissa e mentira. Começaram a definir a sua linha de pensamento que marca uma orientação nociva para a própria História por privilegiar o Homem ignorando o tempo, por sinal, o verdadeiro amortecedor da História. Nos seus dizeres, há provas materiais do ódio cego votado à Frelimo identificando-se, para cúmulo, com posições anti-democráticas e intolerantes. A título de curiosidade, um partidário fervoroso da oposição afirmou com S.I.M. maiúsculo que todos os que votam na Frelimo são ignorantes. Essa afirmação, hoje banal, mostra o tipo de reservistas com que a nossa oposição conta, prontos a serem introduzidos no arsenal dos seus opinion makersO que me força a redigir estas linhas é o facto de, no TUDO SERVE, estarem presentes argumentos que extrapolam os limites de simples vias justificativas para se chegar ao poder político, ao abarcar o campo da História que é uma das pré-condições para que o povo se sinta UNIDO. Pelo contrário, ela tem sido usada como arma de divisão! 

Trata-se de um esforço bastante extensivo e que faria presumir um trabalho exaustivo se não fosse em grande parte a repetição de comentários dispersamente localizáveis, feitos por pessoas magoadas no processo da luta e, desde logo, também de credibilidade suspeita para a reescrita da História. De resto, elucidam-nos de que tomaram como ponto de partida e de referência a necessidade de reconciliação nacional. Que astutos! Que astúcia! Estou a pensar no diálogo entre o Diabo com Jesus «transforme essa pedra em pão» cujo conteúdo contém manhas consagradas a esta temática. Com ódio, num tom subjectivo, procuram demonstrar que a morte de Mondlane e quase de todos os heróis conhecidos, foi uma conspiração urdida a partir do interior da própria Frelimo, para, de seguida, proclamá-los heróis. Descrevendo pormenorizadamente a situação de então, mais particularmente após a morte de Mondlane, citam vários exemplos próprios de uma revolução, apesar do seu carácter de veracidade ser contestável. Omitindo o lado sombrio dos coutros pretendem fazer crer que eles foram vítimas, em desprezo às várias almas que, pelas decisões adiadas ou divisões mal orquestradas por aqueles, foram tombando no campo da batalha, um por um. Sem justificarem as sucessivas inconsistências de muitos deles em terem um pensamento fixo, acrescentam, porém, os representantes desta discórdia, que a História Oficial se encontra em muitos pontos desactualizada, especificando verificar-se esse facto no que diz respeito aos «verdadeiros heróis», uma mostra de que pretendem destruir todos os fundamentos da nação moçambicana. E é pena que não haja um objectivo precioso para se identificarem, na integridade das suas intenções, as coordenadas exactas do lugar geométrico em que se encontram os adversários do regime.  

No meio de tudo isso, os alunos, do primário ao secundário e até universitário, ficam confusos por ter que enfrentar a História Oficial na Escola a qual não pode ser complementada em casa, porque o encarregado, soprado por informações flutuantes de proveniência com sede de poder, diz que aquela é falsa. O mesmo se diga da confusão no professor que tem de responder conforme as inquietações dos alunos, sob risco de ser chamado de ignorante. Paira, portanto, uma nuvem de incerteza sobre os fundamentos ideológicos da posição assumida e o impacto disso no Ensino. Tornou-se inevitável uma proposta, não uma dessas de que a História dos Jornais nos oferece muitos exemplos, propostas superficiais e unilaterais, que apenas podem substituir uns factos por outros, mas profunda, radical, inclusiva que terá de descer até às entranhas das suas convicções no seu todo para aí operar a mudança científica desejada. Soubemos, quando muito, que particularmente se orgulham de desprezar a história da Frelimo, que infelizmente também é a deles, a uma regra de constância e se abonam de uma larga tradição de insultos que, segundo dizem, lhes têm acarretado dissabores de vulto no Aparelho do Estado. No entanto, a dificuldade com que, no nosso tempo, adoptam e rejeitam a História Oficial, revela que é necessário um certo ecletismo, para evitar lançar os jovens aos argumentos desprovidos de estabilidade e coerência.  

Fazem os autores dos artigos populistas questão fechada de serem homens livres que pretendem mudar o rumo dos acontecimentos e é natural que isto explique a naturalidade com que não analisam o impacto dos seus pronunciamentos e as próprias soluções que preconizam. Reescrever a História não significa negar o que já foi escrito, pelo contrário, é enriquece-la, é corrigi-la, é explica-la à luz das novas concepções ditadas pelo tempo. Todos parecem convertidos de quererem a outra História que não a conhecem, movidos pelos desejos políticos atávicos. Sublinhando essa característica do seu comportamento político, os oposicionistas julgam beneficiar da influência favorável da verdade e dos ventos da História. O surgimento destas posições constitui uma contribuição interessante para a questão da pertinência de reescrever a História, onde tais problemas que se têm levantado façam parte e sejam racionalmente justificados. No exemplo que nos ocupa, a decisão plausível seria a escrita da História das Correntes em Torno da História de Moçambique onde todas as versões até aqui avançadas façam parte, de modo a denunciar o carácter egocêntrico que esta área tem tomado, nos últimos tempos.  

Ignorar o papel do tempo como historicamente sem importância tentando julgar o passado à luz das frustrações presentes constitui erro, sobretudo quando começam a pôr em evidência o papel dos seus ídolos que não encontram fundamentos sólidos quanto ao papel desempenhado. Se as suas investigações, no caso de as terem empreendido, tivessem confirmado que estes indivíduos deram contributo merecedor de registo nos anais da História Oficial, isso não teria diminuído em nada Revolução e não a teria reduzido apenas ao problema de conspiração, tal como não modificaria a nossa opinião decididamente suspeita sobre a obra de alguns combatentes da primeira gesta. Mondlane completa de certa maneira a vitória. A sua concepção apocalíptica, levada até ao misticismo, condu-lo na sua «Lutar por Moçambique» a uma maneira singular de conceber os factores da vitória: a Unidade. Só uns poucos podiam fazer o trabalho «sujo» por razões óbvias que consistia em rejeitar a pessoa de Mondlane desde o começo. Só uns poucos podiam dominar as tendências de união com a refundação de outros movimentos paralelos; só uns poucos podiam dominar as forças centrífugas da Frelimo, reforçando assim o tribalismo e a divisão.

 
Pedro MAHRIC


[1] E. H. Carr. What is History, op. cit. p. 18

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