quarta-feira, 23 de março de 2016

Cartas de Dhlakama ao Presidente de Portugal (1991)


Transcrição de Eusébio A. P. Gwembe
Carta 1
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Presidente da Renamo
Gorongosa, 1 de Março de 1991
À sua excelência o Presidente da República Portuguesa.
Excelência:
Tomo a liberdade de me dirigir a Vossa Excelência na minha qualidade de Presidente da Renamo, numa altura em que no Mundo se conhecem grandes transformações. A Renamo é um Movimento Político que luta pela democracia e liberdade em Moçambique, ciente de que o progresso só é possível em liberdade e paz, condições que em Moçambique só serão possíveis quando se enveredar pela democracia pluripartidária. Estamos convictos de que a Vossa Excelência, com o seu passado de sincero apego aos valores da liberdade e da democracia, compreenderá a determinação da Renamo e não deixará de contribuir para que a paz venha a ser possível em Moçambique.
Somos de opinião que Portugal pode e deve desempenhar um papel relevante na busca de paz em Moçambique, dados os laços históricos e culturais que unem os povos dos dois países, e a vontade de cooperar com os países africanos de expressão portuguesa que os governantes portugueses sempre manifestaram. É tendo em conta essa posição privilegiada e em virtude de a Renamo julgar da maior importância que o novo Moçambique, democrático e pluralista, desenvolva, a todos os níveis, os laços de amizade e de cooperação com o país a cujos destinos Vossa Excelência preside, que tenciono visitar Portugal entre os próximos dias 10 a 30 de Maio do corrente ano.
Aquando dessa visita, seria uma honra para o Movimento a que presido e para mim próprio encontrar-me com Vossa Excelência, no intuito de, conjuntamente, analisarmos a actual situação moçambicana, no contexto geral da África Austral, no propósito de se vir a encontrar os caminhos do diálogo e da paz. Certo de que é do esclarecimento dos pontos de vista de todos os intervenientes no processo de paz e da livre confrontação de ideias que nascem as soluções construtivas, apresento, desde já, os meus respeitosos cumprimentos.
Afonso Dhlakama

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Carta 2
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A Sua Excelência,
O Senhor Presidente da República,
Dr. Mário Soares.
Terminada a visita que efectuei a Portugal, não posso deixar de agradecer vivamente todo o empenho, compreensão e disponibilidade manifestada por Vossa Excelência na resolução do processo de paz no meu País. Creia, Senhor Presidente, que levo deste País as mais gratas recordações de amizade e carinho do Povo Português, o que naturalmente vem reforçar as relações entre os nossos dois Povos. Aproveito a oportunidade para reiterar a Vossa Excelência, Senhor Presidente, os protestos da minha mais elevada consideração.
Presidente da Renamo
Afonso Dhlakama

sábado, 19 de março de 2016

Quando Dhlakama rezou pela Paz em Fátima

Por Eusébio A. P. Gwembe

Lisboa, 9 de Novembro de 1991. As ruas estão repletas de Jornais com títulos curiosos. «Dhlakama foi a Fátima Pedir a Paz»; «Afonso Dhlakama, o Peregrino»; «Dhlakama rezou pela paz em Moçambique», «Dhlakama, o Sobrevivente». Falam de um homem que está no País, vindo da Itália, onde negoceia a paz e para onde vai regressar. Sem as habituais roupagens de militar, afável mas reservado sobe automóvel, a caminho do Santuário da Fátima. Chega sem criar alaridos. Poucos advinham que se encontra ali o líder da guerrilha moçambicana.  Baixinho, vestindo um facto azul escuro e uma gravata às riscas, o homem de quem se guarda curiosidade já está no meio deles. Sobe a escadaria da Basílica do Santuário. São 11 horas,  o «peregrino» ajoelha-se em recolhimento por longos minutos. 39 anos de idade, lidera uma guerrilha conhecida pela sua violência, num dos países mais pobres do mundo. Seus passos testemunham o que sabe fazer, trepar. 
Passa às passadeiras de mármore do lugar dos Valinhos, onde ocorreram as aparições. «Se calhar aqui não vale a pena subir, é escorregadio» diz-lhe o padre Oliveira junto a uma subida. «Podemos subir? Vamos subir», pergunta e responde de um fôlego Dhlakama. Admirado o padre diz «na guerrilha deve estar habituado a andar a pé». Dhlakama limita-se a sorrir, como quase  sempre. Visita os túmulos de Francisco e Jacinta e ouve atentamente dos guias contando-lhe a história oficial das aparições  da Virgem Maria aos três videntes. A sua presença prima-se pela ausência dos aparotosos seguranças que, por exemplo, caracterizam as animadas passagens de Savimbi por Portugal. Desce e estende a mão ao repórter do Público a quem afirma «estou aqui porque sou cristão, sou católico e quero a Paz para Moçambique. Vim aqui rezar pela paz porque confio muito na força de Deus, que é muito forte». Alguns dos Jornais tentam lançar a biografia do guerreiro. «O filho do régulo que fez a instrução primária numa missão católica de São Francisco de Assis e frequentou o Seminário de Boroma, em Tete, baptizado, crismado pela Igreja, ainda se afirma «cem por cento católico». É a descrição do «Público». 
«Estudou em Zobue, onde se manteve por pouco tempo, antes de transferir-se para a escola Industrial da Beira, onde concluiu o quinto ano. Ingressa então no Exército Português, de onde deserta em 1972, com 19 anos, aderindo à Frelimo, mas segundo  o Partido no Poder em Moçambique, a adesão de Dhlakama só aconteceu em 1974». Assim descreve o Jornal.  É hora da Missa. O grupo de Dhlakama senta-se na primeira fila, «bebendo com atenção cada apelo à paz e reconciliação em Moçambique proferido pelo reitor do Santuário, o monsenhor Luciano Guerra. Ao fim da missa, o homem do facto azul afirma que «o papel da Igreja Católica em Moçambique é hoje primordial porque foi a Igreja Católica a exigir que a Frelimo e a Renamo se juntassem». Enquanto fala, à sua frente, os flashes de fotógrafos o assediam. Pouco habituado a essas coisas, prossegue: «Foi da iniciativa da Igreja que as duas forças se juntaram. A Igreja sempre teve um papel muito importante no ensino, por exemplo, e terá um papel muito importante». 
O Padre António Oliveira, amigo pessoal de Jonas Savimbi, escolhido pelo patriarca de Lisboa, por isso, a acompanhar Dhlakama de automóvel desde Lisboa diz aos repórteres: «Ele parece-me um católico convicto. É um homem que não terá praticado muito mas quem tem uma formação católica desde a Infância. Estou surpreso com a sua simplicidade. É um guerrilheiro puro que saiu da mata, ao pé dele Savimbi é uma raposa velha. Dhlakama é mais genuíno e mais sincero que os políticos que conhecemos. Não é um político consumado, mostra quais os seus objectivos, fala sem rodeios, muito claramente, com poucas palavras mas sem floreados. Não terá a cultura e a facilidade de expressão de outros líderes, mas capta pela simplicidade». A hora do almoço, ainda no Santuário, Dhlakama deixa uma dedicatória na qual explica que foi a Fátima pedir a Paz. Estende a sua mão e o seu coração aos irmãos da Frelimo a quem promete «um espírito de esquecer e não retaliar contra os que o combateram». Aproveita visitar no Colégio Pio XII o filho mais velho do malogrado Evo Fernandes. 
Dhlakama é um homem silencioso, quase tímido. A comitiva que o acompanha é extremamente reduzida e as palavras parcas. Enquanto esteve em Portugal não deu uma só entrevista, esquivou-se a todas. É hábito dele!  Quando permaneceu em Portugal, pela primeira vez, no ano de 1982, ninguém deu por ele. O semanário diz que «agora, apesar dos encontros oficiais, continua a parecer um homem estranhamente acanhado; sem o aparato de um chefe africano. Compará-lo com Savimbi é totalmente descabido de sentido. Enquanto o líder da Unita não dá um passo sem um exército de gorilas, Afonso Dhlakama viajou sem guarda própria e com apenas um destacamento de 3 ou 4 elementos da escolta (a paisana) designada por Portugal e que mantinham sempre a largos metros do líder». Despertados pela curiosidade, algumas pessoas dirigem-se a Dhlakama para se apresentarem na qualidade de portugueses que viveram em Moçambique.

Fontes: 
Expresso, Sábado, 9 de Novembro de 1991
O Jornal, Sexta, 8 de Novembro de 1991
O Público, 9 de Novembro de 1991
Semanário, Lisboa, 9 Nov 91

sexta-feira, 18 de março de 2016

A Carta de D. Manuel Vieira Pinto que Samora Machel não leu (Parte 2)

Leia a parte 1 Aqui.
Povo não sabe onde pôr o coração.

Aspirações do povo:
O Povo sente na carne e no espírito todas as violência: os massacres, os assassinatos, os maus tratos e as torturas. Sente a humilhação e a degradação. Sente a perda da sua própria vida e da sua própria alma: a perda da sua personalidade, identidade e cultura. E sente, com uma intensidade ainda maior, o profundo desejo de um tempo melhor: um tempo de maior justiça e de maior dignidade; um tempo de um bem estar maior a todos os níveis: a nível político, económico, administrativo e militar, a nível espiritual, moral e cultural. O Povo, esmagado por tantas violências e por tantas carências, aspira, de facto, a um tempo de maior justiça e de maior amor. Mas parece não saber donde poderá surgir, efectivamente, esse tempo de maior justiça e de maior amor. A desilusão é grande, e, como dizem os velhos, «o Povo não sabe onde pôr o coração». 
Nenhuma das forças em presença lhe merece inteira confiança. Uns e outros, mercê das arbitrariedades e injustiças cometidas, humilharam-no e desiludiram-no. Mas, apesar de tudo isso, continua a sonhar com um tempo de justiça e de paz. Continua a esperar que alguém o tome a sério e lhe devolva a dignidade e a liberdade a que tem indiscutível direito. Impõe-se, portanto, o aparecimento de homens que façam uma verdadeira e clara opção pelo Povo, pela sua vida e os seus direitos, pelo seu desenvolvimento e bem-estar, pela sua personalidade e cultura, pela sua independência e soberania. Homens que façam sinceramente um opção pela paz, contra a guerra e contra todas as armas de guerra, uma opção pela vida e contra todas as formas de destruição e de morte, uma opção pelos valores que possam salvar, efectivamente, a Nação Moçambicana.

Opção por uma política de maior verdade:
Em primeiro lugar, a opção pela verdade. Urge, de facto, uma política de maior verdade, a  todos os níveis. A mentira, tão infiltrada nas Instituições, no Aparelho do Estado e do Partido, nos diversos sectores da vida nacional, terá que dar lugar a uma política de maior verdade. A hipocrisia, as meias-verdades, os discursos alienantes, a informação orientada, as diversas formas de manipulação e de instrumentalização, terão que dar lugar à sinceridade, à honestidade, ao respeito pelas consciências, pela inteligência, pela liberdade e co-responsabilidade de todos e de cada um dos cidadãos do nosso País. Só pelo cultivo da sinceridade e da verdade poderá haver, nos diversos sectores da vida da Nação, na Comunidade Política e nas Instituições partidárias, políticas, sociais, económicas, jurídicas, educacionais e culturais, consciências vivas, inteligências criadoras, liberdades solidárias e responsabilizadas, participação consciente e generosa.
A mentira, tenha ela a face que tiver, corrompe e aliena. Um povo governado ou orientado por mentiras organizadas ou por ideologias mutiladas ou redutoras, jamais será um Povo saudável e adulto. Será, pelo contrário, um Povo ameaçado naquilo que ele tem de melhor e mais profundo: a sua consciência, a sua liberdade, a sua dignidade e criatividade. Impõe-se, portanto, uma política de maior verdade e de maior sinceridade, uma política de maior serviço à dignidade, à liberdade, à criatividade e responsabilidade de todo o nosso Povo.

Opção por sistemas e modelos mais próximos e mais ajustados:
Impõe-se, também, uma opção por sistemas e modelos que tenham mais em conta o homem concreto, o Povo inteiro, ou seja, a totalidade dos seus legítimos direitos e deveres, e das suas justas e irreprimíveis aspirações. Que tenham mais em conta a inteira personalidade da Nação Moçambicana. Torna-se, portanto, imperiosa a revisão dos sistemas e modelos em curso, abandonando o que neles possa haver de humilhação e opressão, e conservando, com um espírito sempre mais crítico e mais aberto, o que neles houver de verdadeiro e autêntico crescimento do homem e do Povo.
Verificamos com tristeza que, apesar dos esforços havidos e dos sucessos alcançados, o Povo Moçambicano continua, na sua maioria, a ser objecto e não sujeito do seu próprio crescimento e da sua própria história. Continua, sobretudo, a servir, com grave prejuízo para a sua personalidade e liberdade, ideologias e culturas estranhas. Impõe-se, na verdade, uma lúcida análise das ideologias, dos modelos e sistemas, os quais, julgados, num dado momento, os melhores para servir a libertação e o crescimento do Povo, hoje se revelem como sistemas ou modelos menos ajustados e menos aptos a contribuir, eficazmente, para um real e solidário crescimento do Povo e da Nação. Impõe-se uma opção por sistemas e modelos mais próximos da cultura e índole do Povo. Não se trata de contrapor uma ideologia a outra, um sistema a outro sistema ou modelo, mas de proporcionar a todo o Povo possibilidades reais de ser, ele próprio, o sujeito indiscutível do seu desenvolvimento e da sua história, o primeiro responsável da sua independência e do seu destino.

Opção pelo homem concreto:
Esta opção por ideologias, sistemas ou modelos mais próximos e mais ajustados, implica, naturalmente, a opção pelo homem concreto, pelo Povo concreto e pelos valores que são inerentes e inalienáveis. Com isto queremos dizer que, no centro de toda a actividade política, económica, social, jurídica, cultural, deverá estar presente o homem concreto, real, o homem na sua inteira verdade, com a sua dimensão individual e social, com a sua imanência e transcendência, a sua vocação histórica e trans-histórica. O homem concreto e inteiro, e não o homem utópico, abstracto, reduzido ou parcelados. Devera estar presente o homem todo e o Povo todo: o Povo real, concreto e não o Povo abstracto ou utópico.

Opção pelos valores superiores do homem e do povo:
A opção pelo homem e pelo Povo, como tais, exige a opção pelos valores que os caracterizam e lhes dão, no conjunto dos Povos, uma fisionomia inconfundível. Exige, também, uma opção pelos direitos e pelas liberdades que lhes são inerentes. Urge, de facto, uma política de maior respeito e de maior empenho pelos valores essenciais ao homem e à sociedade, e pela cultura própria do Povo e da Nação Moçambicana. A experiência diz-nos que não basta, empenharmo-nos em alcançar mais valores científicos e tecnológicos, mais valores ideológicos, jurídicos e políticos, mais valores económico-sociais. Urge, efectivamente, um empenho que permita dar aos valores espirituais, éticos, morais, religiosos, culturais e humanos o lugar que lhes compete na libertação e crescimento de cada um e de todos, na construção da sociedade e na edificação da nossa Pátria. Urge um empenho mais sério e mais autêntico no sentido da defesa e promoção dos valores próprios do Povo e cuja perda ou destruição constituiriam um grave atentado à personalidade e à identidade da Nação Moçambicana, um prejuízo irresponsável para o património espiritual da humanidade e dos Povos.
Sem dúvida, não basta crescer ideológica, política e economicamente. Não bastam os valores que fazem o bem-estar material. Impõe-se a opção clara pelos valores do espírito, pelos valores superiores do homem e da sociedade. Caso contrário, poderemos assistir a um certo crescimento científico, tecnológico, político, económico-social e constatarmos, ao mesmo tempo, um crescimento e imparável degradação moral, espiritual e cultural do homem e da sociedade, do Povo e da própria Nação. O clima de violência, de arbitrariedades, de abuso e de egoísmo, os diversos crimes contra a vida, contra  dignidade humana e contra os valores mais sagrados do Povo - como são os valores espirituais, morais e religiosos -, as mentalidades e comportamentos imorais, mostram bem a degradação e a corrupção do homem, da mulher, da família e da sociedade moçambicana não são, infelizmente, um simples receio, mas sim uma triste e preocupante realidade. Urge, portanto, uma ampla e corajosa promoção e defesa dos valores humanos, dos valores espirituais, morais e religiosos. A par dos valores da ciência, da tecnologia, da política e do progresso económico-social. Urge uma atenção maior e mais esclarecida aos sistemas de ensino, de educação e de cultura. 

Opção pela não-violência:
A opção pelos valores espirituais, morais, culturais e religiosos, isto é, pelos valores superiores do homem e da sociedade, arrasta consigo uma outra opção inadiável: a opção pela não-violência. Talvez esta opção pela não violência possa parecer, à partida, um pouco ingénua ou irrealista. Contudo, ninguém ignora que a violência gera violência e que o cultivo da violência jamais levará à construção de uma sociedade não violenta. O avanço e generalização da violência arbitrária e assassina obriga-nos, por isso, a propor a opção pela não-violência. Só deste modo conseguiremos, verdadeiramente, uma sociedade e uma Nação de homens não-violentos, isto é, de homens capazes de vencer a tentação dos meios violentos, e de construir uma sociedade, recorrendo a meios humanos, racionais e pacíficos. A unidade nacional, a paz civil, a concórdia, a solidariedade, a amizade entre as diversas tribos, línguas e culturas que integram e caracterizam o nosso País, não virão pela violência das armas nem pelo cultivo do ódio e do espírito de represália e de vingança. Não virão pelas estratégias ou políticas de liquidação e destruição do adversário, mas sim pelo cultivo e defesa dos meios não-violentos. A paz digna, humana e duradoura, será fruto da justiça, da reconciliação, do entendimento, das conversações, da magnanimidade e da sinceridade de uns e de outros. Será fruto dos meios não-violentos, dos meios racionais, éticos, morais, políticos, diplomáticos e jurídicos.
Esta opção pela não violência, sem dúvida imperiosa  e inadiável, implica, por um lado, que se encontrem as medidas adequadas no sentido de se pôr termo imediato às crueldades organizadas e premeditadas - como são os massacres, as execuções sumárias, os assassinatos, os castigos degradantes e as torturas -, de se acabar com as represálias indiscriminadas, as detenções arbitrárias, os julgamentos a partir das Polícias ou das Forças Militares, a captura e deslocação compulsiva de populações, o abuso das armas e a arrogância do poder. Impõe-se, de facto, uma ordem que proíba, terminantemente, esta prática hedionda da violência assassina. Uma ordem que exorcize, de vez, o espírito de vingança, de represália, de humilhação e liquidação física do inimigo, ou de pessoas e populações julgadas suspeitas ou encontradas nas áreas de influência do adversário. 
Uma ordem que proíba as arbitrariedades, os roubos às populações indefesas, a destruição de casas e de bens, a violação de mulheres, o desprezo sistemático pelo direitos da pessoa humana e do próprio Povo. Que proíba às Tropas, e operações de reconhecimento, de controle ou de «limpeza», liquidar os homens que encontram e de levar consigo as mulheres, situando-as em zonas obrigatórias ou estratégicas. Uma ordem que proíba os abusos contra a Constituição, a Legalidade, a Ética e a Cultura da nação. Por outro lado, a opção pela não-violência implica que se promova e favoreça, a nível das consciências, da sociedade e da Nação, um clima de maior respeito e de maior concórdia. Um clima que permita, a nível das forças em presença, reduzir as posições extremadas, ultrapassar os ódios e o espírito de vingança, e faça nascer, pelo concurso de ambos os lados, aquele conjunto de meios não-violentos que tornem possível a reconciliação e a paz.
Isto exigirá, à partida, uma confiança maior na força moral e espiritual do homem e do próprio Povo, uma vontade maior de entendimento e de reconciliação, uma aceitação mais corajosa da política do diálogo e das conversações, como política decisiva para a paz nacional. Exigirá, também, que se abandone a linguagem da violência e se promova, a nível da Nação, uma linguagem, uma mentalidade e um comportamento de não-violência. Que se promova e assuma, com maior sinceridade, a prática da clemência, do amor solidário e da justiça. A paz nacional não virá da violência das armas, ou da violência do Povo armado, mas sim da força dos meios humanos, políticos e éticos, da força da justiça e do amor.

Opção pela justiça:
Urge, portanto, uma política de maior justiça, a par da política de não-violência. Uma política que se concretize, por um lado, na eficaz ultrapassagem de situações de injustiça e de medidas ou programas que segreguem, de algum modo, a discriminação, ou que favoreçam o aparecimento de novas formas de opressão e de alienação. Uma política que, por outro lado, abra caminho à prática da justiça e ao livre exercício dos direitos e liberdades de cada cidadão, particularmente no campo dos direitos políticos. Concretamente, a discriminação a partir dos privilégios e das facilidades de acesso aos bens de consumo, a partir do poder de compra em divisas, ou a partir de ideologias, posições partidárias, etnias, nacionalidade, região, cultura, religião. 
Não basta, efectivamente, a preocupação pela  justiça social, desconhecendo outros aspectos essenciais da justiça. Por isso, a opção pela justiça, garantia e guardiã da dignidade da pessoa humana e, bem assim, da unidade nacional e da paz civil, obriga a ter em conta aquela justiça que sirva o homem todo, isto é, o homem com os seus direitos individuais e sociais, os seus direitos económicos e políticos, os seus direitos culturais e espirituais, morais e religiosos, as suas liberdades objectivas e subjectivas. Aquela justiça que sirva o Povo inteiro, isto é, o Povo com as suas legítimas e indiscutíveis aspirações, com as liberdades fundamentais e indissociáveis da sua dignidade, criatividade e independência, com o direito indiscutível de ser, ele mesmo, o sujeito do seu próprio desenvolvimento, da sua libertação e da sua cultura.
Não é necessário lembrar a degradação da justiça, praticamente a todos os níveis. Sente-se, por toda a parte, uma grave e injuriosa forma de injustiça: o desprezo pela pessoa humana e, simultaneamente, uma crescente e irresponsável violação dos direitos humanos. As próprias Instituições, criadas e organizadas para defender e garantir a justiça, o direito, a dignidade de cada um e do próprio Povo, parecem claudicar neste ponto, agravando o desprezo pelo homem concreto e a violação sistemática dos direitos e de liberdades fundamentais. Impõe-se, na verdade, uma política de maior justiça em todos os campos, de maior defesa dos direitos invioláveis de cada um e da cada uma, e de maior respeito pela dignidade da pessoa humana, seja homem ou mulher, velho, jovem ou criança.

Opção pelo amor:
A opção pela justiça anda junta com a opção pelo amor. Não se trata de um amor abstracto, platónico, sentimental e inoperante. Trata-se, pelo contrário, de um amor que, na prática, se manifeste no reconhecimento e defesa do homem e do Povo, o compromisso com a vida e com as alegrias e tristezas, aspirações e frustrações, vitórias e fracassos de cada um e da cada uma, e que se empenha seriamente nos combates pela dignidade, a libertação, o desenvolvimento de todo o Povo, na partilha, na solidariedade, na amizade e na fraternidade. Trata-se de um amor que, em última análise, é «a lei fundamental da perfeição humana e, portanto, da transformação do mundo», de um amor que, pela sua força de libertação, de humanização e de entendimento, gera, alimenta e consolida a paz social, a paz civil, a paz nacional. Não será o ódio a força motriz dos homens novos, das sociedades novas e dos povos novos, mas sim a justiça e o amor. Não será a civilização do ódio e da violência assassina a civilização da paz e do progresso dos homens e dos povos, mas sim a civilização da justiça e do amor.

Senhor Presidente:
Na efectivação destas opções, que consideramos imperiosas e urgentes, Vossa excelência pode contar com o apoio que de nós dependa, como Bispos, como pastores da justiça, da verdade, da liberdade, do amor, da reconciliação, da concórdia e da paz, como pastores do homem e da sua dignidade, vocação e direitos. Terminamos, pedindo que não veja nesta nossa exposição outra intenção além de querermos ajudar seriamente na libertação e desenvolvimento do nosso Povo, na construção de um país sempre mais livre da humilhação e da violência, na edificação de uma Pátria sempre mais digna, mais culta e mais próspera. Aceite, Senhor Presidente, as nossas respeitosas e cordiais saudações e os nossos votos de muitas prosperidades, sobretudo no trabalho pela paz e pala unidade nacional. Que o Ano Internacional da Paz traga a paz a Moçambique, à África Austral, ao Continente Africano, Ao Mundo Inteiro. 

Nampula, 25 de Setembro de 1986
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D. Manuel da Silva Vieira Pinto

Fonte: O Jornal, 16-09-1988

Transcrito por Eusébio A. P. Gwembe 

quinta-feira, 17 de março de 2016

A Carta de D. Manuel Vieira Pinto que Samora Machel não leu

Samora Machel e Manuel Vieira Pinto fazem parte da História de Moçambique. O primeiro foi o líder incontestável líder que conduziu o país à independência tornando-se no primeiro presidente durante 11 anos. O segundo foi o único bispo português que se insurgiu pública e abertamente contra a dominação colonial, pronunciando-se, em coerência, pela autodeterminação do povo moçambicano o que lhe custou a expulsão, dias antes do 25 de Abril.  Nos 11 anos de independêcia, as relações entre o Estado e a Igreja estiveram longe de ser as melhores. Apesar disso, Vieira Pinto e Samora Machel nutriam uma sincera admiração e respeito um pelo outro. Eles procuravam manter encontros pessoais. Em 25 de Setembro de 1986, Manuel Vieira Pinto escreveu a carta que não chegaria ao destinatário, em virtude deste morrer (19 de Outubro) antes de a receber, num encontro a dois. Era um inventário frontal das inúmeras situações provocadas pela guerra provocadas pelos dois lados e do apontar dos caminhos julgados mais eficazes para a obtenção da paz. Eis o conteúdo da carta:


O Povo não sabe onde pôr o coração.

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A confiança que Vossa Excelência nos merece, como Presidente da Frelimo e da República Popular de Moçambique, leva-nos a falar, mais uma vez, das violências que não cessam de humilhar e destruir o nosso povo. A guerra continua e com ela a violência, a humilhação, os abusos, os excessos, as atrocidades e os crimes. Permita-nos, Senhor Presidente, que falemos, concretamente, das violências que, neste momento, mais humilham e esmagam o nosso Povo, mais destroem o país e o encobre de vergonha e de sangue: os massacres, as execuções sumárias, os assassinatos, as n.... e as torturas.

Massacres: 
As informações de que dispomos dizem-nos que os massacres, cometidos por uns e por outros, não são um boato ou uma pura invenção, mas, sim, uma triste e dolorosa realidade. Sabemos que ao longo destes anos de guerra, os massacres de pessoas e de populações inocentes e indefesas foram muitos, contando-se por milhares, o número de vítimas: homens, mulheres, velhos e crianças, jovens e adolescentes, mães lactantes e mães grávidas. O povo pergunta pelas razões destes crimes, destes actos executados, e pergunta igualmente por quem os comete ou manda cometer. Julgamos que não basta responder com a desculpa de que a guerra é guerra ou de que na guerra não há lei, nem há moral. 
O povo entende que na guerra há uma inelutável irracionalidade congénita, o que necessariamente dá origem a abusos e a violências arbitrárias. O povo entende que a irresponsabilidade, a indisciplina, o descontrolo, o espírito de represália e de vingança podem tornar, num dado momento, os homens armados em homens ferozes, homens sem lei e sem um mínimo de respeito pela vida, pela dignidade da pessoa humana e pela segurança a que as populações têm inegável direito. mas, bastarão estas razões para explicar os numerosos massacres, cometidos contra pessoas inocentes, populações indefesas e contra o próprio Povo? Não haverá outras causas, além da lógica diabólica da guerra e da irresponsabilidade de quem os comete, permite ou manda cometer?

Perguntas fundamentais: 
O povo pergunta se na origem destes actos brutais, não estará uma ideologia de violência e de desprezo pela vida e direito da pessoa humana, não estará uma estratégia de liquidação e de extermínio, não estará uma política de posições obstinadas e irredutíveis. O povo pergunta se na base destas atrocidades não estará o princípio imoral de que os fins justificam os meios, de que na guerra não há lei e de que a necessidade extrema tudo desculpa, se na origem destes abusos não estará a desagregação, a corrupção dos valores mais elementares da ética, da moral, do direito e da própria cultura. O povo pergunta se os massacres e outros actos abomináveis são apenas um atentado contra a vida das pessoas e das populações ou, igualmente, um atentado contra a vida e a alma da própria Nação.

Crueldades: 
Estas perguntas tornam-se mais insistentes quando tais atrocidades são cometidas com requintes de crueldade e de cinismo. Muitos, com efeito, têm sido os massacres perpetrados, com um desprezo absoluto pela dignidade e direitos fundamentais da pessoa humana e também com requintes de terrorismo  e de extrema crueldade. Basta pensar nos massacres de pessoas frágeis e inteiramente indefesas, como são as crianças, os velhos, as mães lactentes ou grávidas, nos massacres de populações, convocadas e reunidas ao engano e em seguida encurraladas pelas armas e barbaramente destroçadas e assassinadas. Basta pensar nas centenas de pessoas retalhadas ou liquidadas a golpe de catana, de baioneta ou de punhal, torturadas ou degoladas, ou então queimadas vivas.
Estas e outras vergonhosas crueldades põem, de facto, em causa a civilização e a cultura e levam-nos, necessariamente, a concluir que tais crimes não seriam possíveis se, a par da irracionalidade e brutalidade da guerra, não houvesse um processo de degradação e de corrupção dos valores éticos, morais e espirituais do homem e do Povo Moçambicano. O Povo preocupa-se e, diante destas vergonhosas e infames manifestações de violência, não deixa de perguntar se, a par das armas que massacram as pessoas, não há outras armas que tentam liquidar e destruir a alma e a vida do País.

Execuções: 
As execuções sumárias constituem uma outra violência degradante e criminosa. Estas execuções sumárias, tenham a justificação que tiverem, são sempre um crime, um atentado à legalidade, uma injúria grave à dignidade e aos direitos de todo o ser humano, bem como ao direito de todo o homem a que, uma vez acusado, a sua causa seja examinada, com equidade e publicamente, por um Tribunal Independente e Imparcial. Muitas foram as execuções sumárias, ocorridas nestes anos, por sentença de tribunais improvisadas e presididos pelas Forças de Defesa e Segurança. Alguns destes julgamentos e execuções, mercê da crueldade que os caracterizou e acompanhou, transformaram-se num horroroso espectáculo de sangue. Seria longa e chocante a enumeração destes lamentáveis espectáculos de sangue. 
Limitamo-nos a lembrar, como exemplo, as execuções à baioneta, à catanada e à facada, as execuções com torturas e humilhações dos acusados e condenados, as execuções por espancamento, por estrangulamento ou por esmagamento do crânio, as execuções por esquartejamento, abrindo, por vezes, a barriga aos executados, arrancando-lhes as vísceras e expondo-as ao público, as execuções com a participação das populações, manipuladas para o efeito, e, por vezes, obrigadas a injuriar e a esbofetear os cadáveres, deixados, por fim, insepultos à mercê dos abutres e das feras. Estas horríveis e vergonhosas execuções denunciam, tal como a violência dos massacres, a lógica impiedosa da liquidação do inimigo, a todo o custo, a lógica da represália e de vingança, não olhando a meios nem a imperativos de ordem moral ou mesmo legal.
Sentimo-nos, por isso, obrigados a lembrar às Forças em presença que tais execuções corrompem a cultura e a civilização do País, põem em causa a personalidade e a alma da Nação, abrem caminhos ao crime e ao abuso contra a vida e contra a dignidade, seja de quem for.

Assassinatos: 
Os assassinatos, a partir sobretudo das áreas afectadas ou simplesmente suspeitas, aumentam sempre mais, tornando-se, por isso, na consciência de quem os pratica ou manda praticar, num acontecimento sem qualquer responsabilidade moral. Matar não é nada: assim se exprime quem comete tais crimes. Parece, com efeito, que a vida das pessoas não é mais um valor que mereça respeito, não é mais um direito que mereça defesa. O assassinato torna-se vulgar. A vida, o valor, o sentido da vida estão postos em causa. As pessoas sentem-se inseguras e, mais ainda, quando vêem pela frente homens armados. 
Como diz o Povo, chorando amargamente esta humilhação «os homens da Renamo desprezam e matam», «os homens da Frelimo desprezam e matam», uns e outros não têm pejo em assassinar homens ou mulheres, velhos ou crianças. Uns e outros não sabem mais o que é o respeito pela vida humana e pela intangível dignidade de todo o ser humano. Por isso, cometem assassinatos a frio, usando muitas vezes métodos cruéis. Há assassinatos a golpe de baioneta, de faca ou de catana, a golpe de martelos, de machados e de chicote. Há assassinatos por decapitação, por espancamento, por mutilação, por esquartejamento, por sevícias ou torturas até à morte. Há assassinatos por fogo ou por outros métodos cruéis e desumanos, tais como enterrar as vítimas ainda vivas, obrigando-as previamente a abrir a própria cova. Mas todos sabemos que os assassinatos são um crime de delito comum e constituem, à face da história e da consciência do Povo, uma pesada hipoteca de sangue. Estes crimes, tal como o crime das execuções sumárias e dos massacres, abrem caminho à violência generalizada, à degradação dos valores que defendem a vida e a dignidade do próprio Povo.

Maus tratos e castigos desumanos: 
O clima de violência engendra e autoriza mais violência. Os maus tratos, os castigos humilhantes, são actos de violência degradante e, como tais não deveriam ter lugar em Moçambique. A Constituição do País, a própria cultura do nosso País, não deveriam dar lugar a práticas desumanas e primitivas, como são os maus tratos e os castigos humilhantes. Infelizmente, estas práticas, estão presentes no dia a dia das populações. Há maus tratos, há medidas político-militares e administrativas que magoam e humilham o Povo. Os castigos desumanos e os maus tratos são crimes à face da ética mais elementar. São graves atentados contra o melhor da consciência universal dos Povos, tão clara e corajosamente manifestada na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Convenção Contra a Tortura e Contra Tratamentos e Castigos cruéis, desumanos e degradantes, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de Novembro de 1948. 
Hoje, não falta quem, por sua conta, mande aplicar o chicote ou determine o castigo que muito bem entender. O chamboco tornou-se frequente e irresponsável, e igualmente o castigo pela aplicação da pena capital. Qualquer comandante a pode decretar. qualquer cidadão pode ser executado, não contando para nada a Legalidade ou as Instâncias competentes. Há mesmo quem diga que, em tempo de guerra, não há Tribunais. Há a lei da guerra, a lei da repressão e da liquidação de possíveis ou reais inimigos.

Torturas: 
As torturas são actos imorais e criminosos. São graves atentados contra os Direitos do Homem, contra a honra e a dignidade da Nação. Nada, absolutamente nada, justifica a tortura. Uma causa que pretendesse defender ou consolidar o deu direito e a sua justiça, um Regime que tentasse assegurar a sua continuidade ou estabilidade, usando tais medidas, estaria a provocar a sua própria degradação e ruína. A tortura, os maus tratos, o desprezo sistemático pelo homem, não consolidam o poder constituído, antes o corrompe e o põe em grave perigo. Tais abusos e crimes também não concorrem para a unidade, a reconciliação e a paz nacional, antes as destroem e dificultam.

Aspirações do povo:
Continua.

Fonte: (O Jornal. 16-09-1986), Transcrição de 
Eusébio A. P. Gwembe

domingo, 13 de março de 2016

Correspondência entre Chissano (Pai) e Eduardo Mondlane em 1954

Transcrição de Eusébio A. P. Gwembe

Concelho de Gaza,
João Belo, C. P. 34.
P. East Africa - Via Lourenço Marques.
17-03-1954.
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Exmo Sr. Eduardo Chivambo Mondlane,
United  States Of America,
Illinois, Evaston.

A sua saúde, que a minha vai bem, graças a Deus. Naturalmente o senhor vai estranhar receber esta minha carta sem saber quem lhe manda, talvez por já não se lembrar de mim. Sou uma daquelas pessoas a quem o Senhor mandou cumprimentos por intermédio do Mabunda, irmão mais moço do Dr. Mabunda a quem, segundo me consta, o senhor preparou a papelada para ir matricular-se ai numa das universidades locais. Sou, numa palavra, um conterrâneo seu, natural de Chibuto, residente actualmente em João Belo, onde presto serviço de intérprete administrativo. Desejo retribuir-lhe os cumprimentos que nos enviou por intermédio do senhor Mabunda de Chicumbane. Grato fiquei por saber que um meu patrício havia tirado um Curso de Ciências Económicas e financeiras em Lisboa, mas que já se encontrava na América para tirar uma especialidade e doutorar-se. Que tal vão esses estudos? Quando é que pensa completar o curso, e quando volta para cá? Como vê, também sou das pessoas que gosto de instruir e educar os meus filhos. Tenho a estudar, em Lourenço Marques, no Liceu Salazar dois filhos e um, na escola Técnica da mesma cidade. Gostaria depois mandar alguns filhos a Portugal, afim de tirarem ali algum curso superior, mas para isso é preciso dinheiro, o que não tenho, pois Deus, dá nozes a quem não tem dentes como se (o)usa dizer. No entanto, vou ver se tento conseguir alguma Bolsa de Estudo para eles seguirem depois os seus estudos superiores em Portugal. Deus queira. Quanto a vida em Gaza é barata, verificando-se já um número progressivo de pequenos agricultores indígenas que fazem as suas culturas de vária espécie: arroz, milho, feijão, trigo, algodão e outros cereais, que são vendidos depois em mercados pelos próprios indígenas, assistidos pela autoridade. Há nativos que chegam a tirar 100 a 150 sacos de qualquer das espécies de cereais indicados. Somente o ano passado é que foi ano de fome devido a escassez das chuvas. Porém, sua Excia, o Governador Geral de Moçambique, Gabriel Teixeira, fez na Inhamissa, uma obra meritória, transformando, no seu dito, o Xai-Xai, antigo  celeiro de mosquitos, num celeiro de cereais, o que é bastante consolador para as populações  indígenas. Há bastante terra para todos aqueles que têm vontade de trabalhar. Temos bastantes escolas do ensino primário Oficial e do ensino missionário, Portguês, espalhadas por mato além. Temos Liceus e Escolas Técnicas em Lourenço Marques, faltando-as ainda aqui, em Gaza. Quanto ao ramo do comércio, há por enquanto poucos indígenas inclinados para isso, verificando-se em grande escala, comerciantes monhés e alguns europeus. Os agricultores indígenas, na maior parte, fazem as suas machambas com charruas de bois e alguns com tractores da sua propriedade. Por hoje não vou além deste ponto final, mandando-lhe os meus respeitosos cumprimentos.

Alberto Chissano

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Resposta de Mondlane ao Senhor Chissano
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Eduardo C. Mondlane
1935 Sherman Ave.,
Evanston, Ill. 
23 de Dezembro de  1954.

Exmo Sr. Alberto Chissano,
Intérprete Official Administrativo,
Caixa Postal 34,
Vila de João Belo, Moçambique

Exmo Senhor Alberto Chissano,
A sua estimada carta do mês passado impressionou-me tanto que traduzi-a para que os meus amigos americanos que se interessam por Moçambique possam lê-la. Sinto-me muito orgulhoso por ter um patrício tão devotado ao seu povo. Não sei se o senhor Chissano compreende o valor intrínseco do que faz por educar os seus filhos. Nenhum povo no mundo tem alcançado uma posição superior sem que tenha habilitado os seus filhos no manejo das ciências. O futuro do nosso povo Africano dependerá da qualidade de educação que os nossos filhos poderão obter, e esta depende de grau de sacrifício que nós responsáveis pela sua educação estamos preparados a dar. Parabéns patrício. 
Os meus estudos vão avançando. Estou agora para acabar a minha tese para a licenciatura. Ficarei mais um ano e meio a fazer uma dissertação para o meu doutoramento em ciências sociais. Para conseguir ficar na universidade e pagar as despesas dos estudos, comida e sala de dormir, bem como os livros, etc., ensino três classes (aulas) cada semana. Tenho em meu cargo 90 estudantes, todos eles brancos excepto um Negro americano e um Chinês. Aqui nesta parte dos Estados Unidos não há preconceitos raciais. Vivo aqui em boas relações sociais com todos os meus colegas, estudantes e professores.
Uma razão porque não escrevo tanto é a falta de tempo. Diga ao nosso amigo Sansão que hei de escrever logo que apanhar um minuto. Estou muitissimo ocupado. Mas não me esqueço dos meus compatrícios. Admiro o Senhor Mutemba muito. Ele é um dos nossos geniosinhos que infelizmente não conseguiu continuar os seus estudos. Estou certo que apesar de não ter feito estudos avançados na medicina é melhor doutor do que muitos deles. Uma coisa que eu admiro muito em Sansão é o seu amor pelo nosso povo africano. Mandá-lo  os meus mais sinceros cumprimentos, e diga-lo que vou escrever muito já.
Que tal é da vida em Gaza. Dê-me alguns detalhes sobre a vida do povo na sua próxima carta.

Com os meus cumprimentos do Ano Novo.
Assino,
Eduardo C. Mondlane (Mu-Khambane)

terça-feira, 8 de março de 2016

Sobre os Patrões Estrangeiros da Renamo

Uma Crónica do Jornalista Fernando Lima, a 2 de Outubro de 1981, ajuda a compreender as redes iniciais de apoio ao movimento, a sua transferência da Rodésia para África do Sul, bem como o seu modus operandi. 

Transcrição de Eusébio A. P. Gwembe

RAS: O «MNR» ou mais uma face da agressão (Por Fernando Lima)

De que forma se articula a actuação dos bandos armados contra-revolucionários como o auto-intitulado «Movimento Nacional de Resistência» no interior de Moçambique, com a estratégia geral de desestabilização traçada pela África do Sul nesta zona do continente? As ligações entre o «MNR» e Pretória, não são de agora. Conheceram no entanto uma certa intensificação após a vitória eleitoral da ZANU no Zimbabwe, santuário inicial do «MNR». Antigos oficiais da segurança rodesiana, clamam para si a responsabilidade da criação da resistência - tornada corpórea com o concurso de «desesperados setembristas» recrutados na África do Sul, Rodésia e Portugal, elementos das tropas especiais de intervenção do exército colonial, dos grupos paramilitares repressivos, da polícia política fascista, de desertores da Frelimo e das FPLM.

A «inteligência» rodesiana assessorada por Pretória, constituiu este grupo de agressão operacional, na perspectiva de persuadir o governo moçambicano, a moderar o apoio à luta nacionalista do Zimbabwe, que em 1976 ganhava um novo ímpeto. Da mesma forma procedem as novas entidades de tutela, banalizadas pelo vigor das cada vez mais audaciosas operações do ANC. Em 1979, as actividades destes grupos fazia-se sentir nas províncias de Manica, Sofala, Tete e Zambézia. Aqui, o apoio era proveniente do Malawi, onde é conhecido o espaço de influência de uma das personalidades chaves do «dossier Resistência» - o industrial português Jorge Jardim, estabelecido actualmente no Gabão. Com a assinatura dos acordos de Lancaster House, o «MNR» corria o risco de ficar sem patrono. As próprias autoridades inglesas encarregadas do processo de transição, exerceram pressões sobre o aparelho rodesiano para o desmantelamento da «operação MNR», incluindo a programação da «Voz da África Livre», posta no ar a partir de emissores instalados em Gwero, Fort Victoria e Untali.

Os ingleses insistem que não se trata de qualquer movimento de carácter autonomista, como pretendiam os rodesianos maquilhar a operação. A este respeito, são hoje conhecidos pormenores relacionados com o ataque aos depósitos de combustível nos arredores da Beira. Esta acção que na altura havia sido reivindicada pelo MNR, foi executada por comando mercenário sob direcção rodesiana. Como represália ao ataque nacionalista contra os reservatórios de Salisbúria. O guia da operação, um moçambicano, foi friamente abatido junto ao local da operação, envergando uniforme militar profusamente decorado com insígnias do «MNR». No início de 1980 são rapidamente encetados contactos com sectores sul-africanos, tendo em vista a adequação às novas circunstâncias criadas. A África do Sul recebia àquela altura, um contingente migratório de referências pouco saudáveis - selous acouts. Os auxiliare de Muzorewa e uma autêntica aguarela de nacionalidades, englobando «mão-de-obra» mercenária momentaneamente sem emprego. É a partir destas unidades que fermentaram e fermentam planos bélicos. Elas constituem o lastro indispensável a alternativas de poder no Zimbabwe, que não tenham o nome de Mugabe. Deste meio saem também instrutores e novos elementos para as fileiras do «MNR», conforme comprovam inúmeras declarações de bandoleiros capturados pelas FPLM.

No plano operacional, os grupos mercenarizados do MNR desempenham o papel atribuído pela estratégia militar racista contra a RPM (não é estranho que atentados contra fontes energéticas na RAS, correspondam a sabotagem de postes eléctricos e linhas de alta tensão no centro de Moçambique). A esta actividade está adstrita a procura de sensibilidades no exterior do continente, envolvendo movimentações nos meios conservadores e saudosistas de Lisboa, Madrid, Paris e Londres, onde assumem maior realce figuras como Orlando Cristina, Evo Fernandes ou mesmo Domingos Arouca. A «Voz da Quizumba» voltou de novo a fazer-se ouvir através do éter, desta feita a partir do Transvaal, província fronteiriça com Moçambique e o Zimbabwe, onde estão estabelecidas as principais bases de insurrectos. Um cordão sanitário de tropas sul-africanas servidas por novos aeródromos de apoio, separa os campos das linhas de fronteira.

Aviões de transporte e helicópteros, fornecem o apoio logístico necessário às acções no interior do território moçambicano. É mencionado o sul do Zimbabwe, incluindo a área de Chipinga e Melselter como corredor de passagem para as actividades sul-africanas contra Moçambique. Este facto constitui certamente ponto de discussão entre as autoridades de segurança de Moçambique e do Zimbabwe nas consultas regulares que mantêm. A brigada de formação no Zimbabwe, com o auxílio de instrutores militares coreanos, poderá constituirum forte dispositivo de dissuação contra aventuras sul-africanas e forças por si instrumentalizadas. Segundo fontes do Ministério da Defesa, as operações de limpeza que decorrem agora em Mossurize têm como objectivo eliminar os focos acantonados na zona mais montanhosa da região. Em tempo de crise, o principal alvo dos elementos armados do «MNR» é a população que sofre represálias decorrentes da recusa em colaborar. A população retirada compulsivamente dos seus locais de habitação é conduzida para zonas mais remotas, onde deve fornecer a alimentação. Populares que ocupam cargos de responsabilidade política e administrativa e familiares, são por vezes mortos como «agentes comunistas», ou mutilados nos órgãos sexuais, orelhas e lábios.

Anteriormente à «Operação Leopardo», que culminou o ano passado com a destruição da base principal nas montanhas de Sitatonga, o grupos com maior espaço de movimentação, faziam operações contra Lojas do Povo, Cooperativas agrícolas, Machambas Estatais e Colectivas, postos administrativos e sedes políticas, comboios e viaturas de carga, nas estradas principais ligando as províncias do sul ao centro e norte do país. Um tipo de actividade que caracterizou a primeira fase dos ataques foram as acções contra centros de reeducação na zona central de Manica e Sofala, de onde eram retirados potenciais recrutas para o «MNR». A maior partedos elementos captrados o ano passado durante as grandes operações militares em Manica, eram jovens raptados junto da população, objectivamente utilizados como «carne de canhão». O armamento utilizado, semelhante a modelos do exército moçambicano, vem confirmar informações reveladas por um prestigioso semanário português, denunciando uma rede internacional de traficantes de armas com destino à África do Sul. Aliás, John Stockwel, ex-funcionário da espionagem americana e autor do livro «A CIA contra Angola», explica os mecanismos de aquisição de «armamento comunista» a Israel, para municiar a FNLA e a UNITA, sem comprometimentos escusados. 

Fonte: AIM, 02-10-1981

Carta dos Antigos Combatentes (25-10-1986)

Enquanto uma pergunta pairava no ar - a luz do artigo 57 da CRM - sobre quem seria o substituto de Samora Machel, no dia 25 de Outubro de 1986 saiu a «Carta dos Antigos Combatentes» dirigida ao Comité Central. Em 11 páginas, defendia, entre várias coisas, o emponderamento dos «moçambicanos originários» e o fim da guerra com a Renamo. Sugeria Chissano para Presidente, e outras individualidades e respectivos cargos ministeriais e/ou de comando. Questionava sobre as causas da morte de Machel e concluía que havia infiltrados. Para o momento em que vivemos, transcrevo as páginas 4-7.

Transcrição de Eusébio A. P. Gwembe
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Camaradas membros do Bureau Político:
Alberto Joaquim Chissano, Major-General
Alberto Joaquim Chipande, General do exército
Armando Emílio Guebuza, Tenente General
Mariano Matsinha, Major-General

Excelências e Compatriotas:
Os problemas de governação do País, que estamos a viver, têm as suas raízes no processo da Luta de Libertação Nacional. Nós, Antigos combatentes, durante a luta armada, estávamos acima de tudo preocupados com a guerra. Fazíamos a guerra com a arma na mão, enfrentando dia e noite a morte. Estávamos todos preocupados com a expulsão do colonialismo da nossa Terra. Assim fizemos e ganhamos a guerra justa.
Durante esse processo tínhamos contacto directo com as nossas populações. Nós víamos o sofrimento e a miséria dos nossos irmãos, irmãs, pais, mães e avôs. Cada um de nós prometia tirar o povo daquela miséria. Para isso a nossa única linguagem com o inimigo era a arma, o fusil. Ali, onde os colonos chamavam de mato, a nossa sensibilidade pelos problemas do Povo era profunda.
Veio a nossa querida independência. Nós, antigos combatentes, ficamos satisfeitos por ver que o nosso primeiro objectivo tinha sido conseguido. Agora faltava-nos conseguir os nossos objectivos em relação às populações. Pensávamos que os nossos irmãos de luta, escolhidos para a governação do País, iriam com mais responsabilidade criar condições para tal.
Os anos foram decorrendo e os problemas foram surgindo a todos os níveis: político, militar, económico e social. Vimos que o País se afundava cada vez mais. Tentamos compreender o que se passava. Olhamos para o passado e para o presente e constatamos esta triste realidade: a Frelimo tinha sido infiltrada. Essa infiltração, para nós que tínhamos feito a guerra, noite e dia, surpreendeu-nos. Procuramos saber como tinha sido possível isso? A nossa admiração não cessava porque, quanto mais tempo decorria mais infiltração víamos no seio do nosso poder político. Soubemos de outros irmãos que alguns dirigentes que tínhamos hoje na Frelimo, muitos deles tinham sido defensores do colonialismo, pertencendo à instituições como a Mocidade Portuguesa, etc. Tentamos falar, denunciar essas infiltrações, mas éramos logo chamados de pretos racistas, ignorantes, ultrapassados e ordinários. E quem nos dava esses nomes? Eram companheiros que apareceram na Frelimo como Camaradas de Luta ou infiltrados, após à Independência.
Compatriotas:
A experiência destes onze anos levou-nos à seguinte conclusão: os onze anos de experiência de governação dos destinos do País mostram-nos com maior evidência que não podemos continuar a confiar o poder político a pessoas que vivem como camaleão.
A morte de Sua Excia o Presidente da República surpreendeu-nos muito. Ouvimos e lemos aquilo que outros Países e personalidades estrangeiras falaram e falam sobre as causas dessa morte. Na realidade, as verdadeiras causas ainda não foram divulgadas oficialmente pelo nosso País. Todavia, Gostaríamos de fazer ver o seguinte:
a) Antes da morte de Sua Excia o Presidente da República, soubemos que a Nação tinha sido ameaçada pelos sul-africanos.
b) Recebemos através do Ministro da Segurança um comunicado em como os Sul-Africanos tinham infiltrado «Comandos» no nosso País.
c) O nosso próprio Ministro da Segurança apelou a toda a população que agudizasse a vigilância a fim de se neutralizar toda e qualquer tentativa do inimigo.
d) Poucos dias antes, a AIM divulgou internacionalmente, no passado dia 15 de Outubro, um artigo em que dava a conhecer que o Presidente Samora Machel era um dos alvos da Hierarquia Militar da África do Sul (cfr. Notícias, 21/10/1986, pág. 5).
Face a estas recomendações do nosso Ministro de Segurança, ficamos de boca aberta, espantados, ao sabermos que a aeronave que transportava Sua Excia o Presidente da República não tinha a tal segurança aguda de que, dias antes da morte, falara o Ministro da Segurança. Não teria sido também agudizar a vigilância, por parte do nosso Ministro de Segurança, se ele tivesse ordenado a escolta da aeronave presidencial durante o percurso de ida de Maputo até à fronteira com a Zâmbia, e de volta, da fronteira da Zâmbia até ao aeroporto de Mavalane? Isto não facilitaria a nossa actuação, socorro e localização da aeronave, seja qual fosse o motivo do embate da aeronave no solo? Também sabe-se que uma boa escolta do avião não permitiria que o avião fosse abatido, caso fosse esta a razão da queda do avião para além da escolta não o permitir, os sul-africanos não tentariam abater ou desviar a rota do avião, porque a escolta iria denunciar isso, pondo a África do Sul em dificuldades. O que significa esta falta de segurança aguda, por parte do nosso Ministro de Segurança? Onde ficou essa tal vigilância aguda? O Ministro, na qualidade de instância máxima para a segurança do Presidente, como se teria esquecido da tal vigilância aguda? O que significa isso? Desleixo? Irresponsabilidade? Falta de competência? Ignorância? É sobre estes problemas de que estamos a falar. É isto que nos faz dizer que houve companheiros que entraram para a Frelimo, em relação aos quais tínhamos e temos dificuldades e dúvidas, mas tentamos, de compreendê-los sempre. Agora estamos cansados e basta!
Compatriotas:
Analisemos; mais uma vez e friamente, o problema da Guerra. Nós somos um País que tem poucos anos de idade, mas julgamos que podemos perceber facilmente o que, hoje, se passa no Mundo. No caso concreto da guerra que estamos a suportar, poderíamos tentar compreender o seguinte:
Há países, neste mundo, que fabricam coisas muito boas para o bem estar e a felicidade das pessoas. Por exemplo, existe o fabrico e o comércio de automóveis, comboios, tractores, aviões, arroz, manteiga, queijo, mel, farinha, bicicletas, camiões, etc. Temos estes artigos que servem para o bem-estar e a felicidade das pessoas. Nós, moçambicanos, compramos ao estrangeiro muitas destas coisas. O problema de transportes públicos é resolvido comercializando com o estrangeiro outros produtos internos.
Mas existe outro tipo de comércio muito generalizado no mundo, mas pouco compreendido pelas pessoas e pelos povos. Queiramos ou não, Compatriotas, temos que saber e termos consciência de que esse comércio existe. É o comércio que não pode ser entendido por todos. É delicado e sofisticado. Para se fazer este comércio, os países detentores de arsenais de armas, têm que ter mercados, isto é, mercados onde possam vender essas armas. Os clientes, em geral, são Estados, Nações ou Movimentos de luta. Para um Estado ou Movimento se dedicar ao comércio de armas, tem que ter razões profundas. Hoje, encontramos certas que se justificam de várias maneiras: luta contra o colonialismo, contra o neocolonialismo, luta contra o Apartheid, contra o terrorismo, luta contra a expansão comunista, contra o capitalismo e o imperialismo, luta a favor duma religião em detrimento de uma outra, guerras motivadas por ideologias contrárias, etc.
Por isso, se analisarmos as guerras que existem neste planeta, veremos que em cada uma delas aparecem razões de sua existência, como as supracitadas. Vejamos a nossa guerra. Uns dizem tratar-se de uma luta contra os bandidos armados. Outros, que é uma luta contra o expansionismo comunista no mundo. Na verdade é que, no campo de batalha, encontramo-nos frente a frente, nós os moçambicanos. Estamos a lutar entre nós. Tudo isto para quê?
De facto, os que têm armas para vender, devem procurar compradores. Mas como se trata de comércio delicado, é necessário procurar ou criar mercados para o comércio de armas. Isto é bastante triste, Compatriotas, mas é a realidade.
Os que possuem o monopólio da venda de armas, não podem cruzar os braços, enquanto essas armas não saem.
Nós, neste momento, constituímos um bom mercado para a saída de armas, porque temos uma guerra interna. Os fornecedores de armas sabem perfeitamente que, para este nosso conflito, quanto mais tempo levar o conflito, mais comércio se faz. Sendo assim, pouco interesse têm de ver o conflito solucionado de forma pacífica. Pelo contrário, alimentam o conflito. Sob a capa de nos ajudar a combater o «inimigo», vão-nos retirando as riquezas para, quando as não tivermos, abandonar-nos e, nessa altura, eles farão acabar esta guerra, porque já não terão interesses económicos. Esta é a outra faceta da guerra. Esta guerra está empobrecendo o nosso país. Não nos enganemos mais! Enquanto não conseguirmos resolver pacificamente os nossos problemas internos - e só podemos ser nós a resolvê-los - estaremos sujeitos a ser clientes dos detentores de arsenais de armamento. Seremos divididos em duas equipas: cada uma com o seu treinador, que é, neste caso, o treinador-fornecedor de armas. Seja quem ele for. O nosso Povo estará a assistir e a suportar este jogo de vida ou morte! Estaremos a ser tratados como bonecas.
Nós, moçambicanos, temos que ter a coragem suficiente para resolvermos os nossos problemas internos e não devemos permitir que estrangeiros nos ponham em guerra seja para lutar contra o expansionismo comunista ou para lutar contra o capitalismo e imperialismo. Quem tira as vantagens e lucros da guerra são os que dela precisam para comercializar armas. Por conseguinte, à esses a guerra é-lhes vantajosa. Nós não temos armas para comercializar. Nós só ficamos com a morte e a miséria. Para o actual conflito interno que temos, devemos procurar e eliminar totalmente ingerências externas. Se o nosso conflito é alimentado por ideologia no nosso país, devemos saber que é chegado o momento de sermos adultos e não permitir que sejamos bonecas animadas.
Compatriotas:
Para finalizar, gostaríamos de fazer um apelo aos nossos dirigentes sobre este documento: que ele é apenas uma nossa opinião. Estamos convencidos de que esta nossa maneira sincera de ver o problema enquadra-se na tradição valorosa da Frelimo de crítica e auto-crítica.
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Nota - Os membros seniores do Potitburo eram: Marcelino dos Santos, Joaquim Chissano, Alberto Chipande, Armando Guebuza, Jorge Rebelo, Sebastião Mabote, Mariano Matsinhe, Jacinto Veloso, Mário Machungo, Óscar Monteiro.