quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Lázaro Kavandame e o nacionalismo maconde (2)


O artigo seguinte foi, originalmente, entregue ao Comité de Descolonização das nações Unidas em 25 de Maio de 1965. O autor é membro do Comité Central da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO)




Sou um camponês de Moçambique, e trabalho na região de Mueda no norte do País. O meu nome é Lázaro Kavandame e quero dar a conhecer a minha experiência de camponês obrigado a trabalhar num país que se encontra sob a dominação colonial portuguesa. Espero que alguns dos factos da minha experiência pessoal possam dar úteis informações ao Vosso Comité e a todos os que se interessam em ajudar o meu povo para alcançar a liberdade contra a opressão portuguesa.

O Governo português não está interessado em aumentar o bem-estar do povo de Moçambique, contrariamente ao que propagandeia através do Mundo, fazendo o possível para alcançar a certeza de que os moçambicanos permaneceram ignorantes. Todas as tentativas do nosso povo para modificar a sua miserável condição são barbara e impiedosamente reprimidas pelo governo português.



As minhas actividades de líder politico popular começaram em 1957, ano em que tomei a responsabilidade de apresentar algumas petições do povo da minha região as autoridades portuguesas locais, após ter constatado as suas misérias e sofrimentos quando eram obrigados a trabalhar nas plantações europeias e asiáticas, ou a cortar madeira e a trabalhar na construção de estradas sem terem sequer as mínimas condições de vida e sem pagamento adequado.



Em primeiro lugar julguei que assim era devido ao nosso povo ser pobre e ignorante, e pedi as autoridades portuguesas que autorizassem que eu- e outros que sabiam ler e escrever, os ensinássemos. Eles eram constantemente chicoteados, encarcerados sem razão, obrigados a trabalhar sem alimentação durante longos períodos, ou multados por não alcançarem as cotas de algodão a que eram obrigados ao fim de cada colheita.



Também pedi que me deixassem organizar um programa de educação para ensinar melhores métodos de cultivo e conservação das colheitas, auxiliando-os a conseguir melhores resultados.



Eu esperava vir a ser capaz de reduzir o sofrimento da maioria dos nossos camponeses, obrigados a trabalhar sob vigilância persistente e opressiva do superintendente português, o qual esta sempre pronto a chicotear. Tentei mostrar as autoridades portuguesas que o salário de 60 escudos (2 Dólares) por mês dum trabalhador agrícola é insuficiente para um homem que também tem de pagar 120 escudos (4 dólares) anuais de impostos ao governo português, fora outras despesas.



As autoridades mandaram-me chamar um certo dia e autorizaram-me a iniciar um programa educativo para os camponeses africanos do meu distrito, permitindo-me também formar uma sociedade cooperativa dos agricultores locais. Além disso as autoridades informaram-nos de que poderíamos cultivar a superfície de terra que desejássemos, uma vez que produzíssemos a quantidade de algodão a que encontrava obrigada cada família africana.



O administrador português tentou desencorajar-me dizendo que era impossível ensinar o que quer que fosse a analfabetos. "Vos, os negros, sois preguiçosos, - dizia ele - a única coisa que vos faz trabalhar é o chicote". Entretanto, durante um certo tempo, ele deixou-nos trabalhar. Estabelecemos a sociedade cooperativa que chamamos "Sociedade Agrícola Algodoeira Voluntária dos Africanos de Moçambique". No princípio éramos 500 pessoas e, num grande campo, cultivamos mapira, amendoim e milho. Ao mesmo tempo cultivamos também a superfície de algodão a que nos obrigavam o governo e as companhias concessionárias, isto é, 4 hectares por família. Solicitamos então ao governo que nos permitisse estabelecer um fundo especial para a compra de bicicletas, papel, lápis, etc. de maneira a facilitar o trabalho da cooperativa.



Mais tarde, como as autoridades portuguesas notassem o êxito do nosso trabalho, fui de novo chamado a administração central do distrito, onde me perguntaram porque é que eu trabalhava tanto sem ser pago. Perguntaram-me, também, se alguém me pagava de qualquer maneira secreta. Respondi-lhes que ninguém me pagava coisa alguma e que o fazia, simplesmente, para o bem-estar do povo de Moçambique, de modo a que cada homem do nosso país viesse a possuir o que cada homem tem direito, vivendo com dignidade e sem sofrimento.



As minhas respostas não agradaram e as autoridades propuseram-me que eu aceitasse trabalhar para a companhia concessionária de algodão SAGAL, a qual controla a região noroeste do Moçambique, oferecendo-me um salário de 1000 escudos por mês (33,33 dólares), uma casa e uma motocicleta, explicando-me que tudo isso era devido ao meu bom trabalho.



Recusei essa oferta devido a sentir que já tinha contraído uma grave responsabilidade para com o meu povo, parecendo-me uma traição abandonar os que tinham confiado em mim durante tanto tempo. O dinheiro que os portugueses me ofereciam não me tentou pois o bem-estar do meu povo era, para mim, mais importante.



Em 1958, a nossa cooperativa tinha alcançado mais de 1000 membros, os quais eram, sobretudo, atraídos pelo facto de não terem de trabalhar sob a supervisão opressora do homem branco, e pelo facto de que, em conjunto podíamos produzir muito mais. Em Julho de 1959 alcançamos 1500 membros.



Foi por essa altura que o governo português, sob a instigação da SAGAL, a companhia concessionária do algodão da região começou a proibir que aumentássemos o número dos nossos membros, dizendo que dali em diante os africanos de Moçambique podiam somente trabalhar para a SAGAL.



Porém, mesmo após essa proibição, a companhia algodoeira não estava contente, pois os 1500 membros da nossa sociedade tinham a liberdade de trabalhar como lhes apetecia, sem serem obrigados, nem directamente explorados. A SAGAL iniciou então uma campanha de provocação mais directa. Sob o pretexto de investigação das nossas plantações, como lho permitia a autorização do governo, começou a enviar homens para visitarem os nossos campos, ordenando a destruição de todas as árvores frutíferas, tais como Laranjeiras e cajueiros, sob o pretexto de que elas eram prejudiciais a produção de algodão. Após isso muitos dos nossos membros começaram a ser presos e obrigados a trabalhar noutras plantações de algodão e sisal, acusados de não ter cumprido com as cotas obrigatórias de algodão. Para nos tornou-se óbvio que o governo português não estava interessado no nosso bem-estar, pois senão não mandava prender bons camponeses africanos, mandando-os para o trabalho forçado nas plantações europeias. Eu, pessoalmente, conclui que os portugueses se opunham a liberdade dos negros e a todas as suas tentativas para melhorar o seu padrão de vida.



Entretanto eu tinha convencido os membros da nossa cooperativa a construírem as nossas próprias estradas, de modo a facilitar o transporte da produção para os mercados centrais, evitando assim de caminhar muitos quilómetros transportando pesadas cargas. Assim, abrimos quatro estradas que nos ligavam com as estradas principais que comunicavam com as principais cidades. Quando os portugueses deram por isso, em vez de contentamento, ordenaram que eu fosse preso, com o pretexto de que não tinha pedido autorização para construir as estradas, e achando estranho que, por simples sugestão minha, o povo fosse capaz de construir trinta a quarenta quilómetros de estradas em tão pouco tempo, uma vez que o mesmo povo não trabalhava com vontade para o governo português.



Entrei na prisão em Setembro de 1959, permanecendo dois anos sem julgamento. Entretanto a nossa cooperativa foi dissolvida por ordem das autoridades, sendo presos muitos dos seus dirigentes. Em 1961 fui libertado da prisão, mas condenado a reclusão em casa. Uma semana depois fui interrogado acerca dos meus planos para o futuro, ao que respondi não ter nenhuns planos.



Então propuseram-me que estabelecesse outra sociedade cooperativa sob as condições seguintes: a sociedade permaneceria sob o controle directo do governo e não poderia ter mais de 25 membros. Por não ter alternativa aceitei a proposta que era feita, trabalhando arduamente durante dois anos para tentar reconstruir o que tinha sido perdido. Plantamos arroz, gergelim, batatas, mamonas e milho. Para podermos cultivar mais terreno sugeri aos membros que compra um tractor novo com os nossos próprios fundos. No dia da entrega do tractor houve uma festa em que participou, praticamente, todo o povo de Mueda e eu falei, explicando a importância do tractor para os nossos trabalhos, dizendo-lhes que os que nos acusavam de preguiçosos não tinham razão e que, para que o nosso povo prosperasse, o que tínhamos a fazer  era organizarmo-nos e aprender melhores métodos de cultura. Em nome da sociedade cooperativa coloquei o tractor a disposição dos Moçambicanos da região que dele necessitassem, pelo que todos me aplaudiram, agradecendo o que eu tinha dito e feito.



As autoridades portuguesas foram informadas acerca das minhas palavras, não tendo ficado satisfeitas com elas. Poucos dias mais tarde, a polícia começou a prender membros da nossa sociedade, acusando-os de vários crimes. Eu fui de novo chamado ao posto administrativo central da região e o administrador perguntou-me se eu tinha ouvido falar do que acontecera na Tanganyka, se eu sabia da existência dum novo movimento chamado FRELIMO, se eu próprio era membro desse movimento político, ou se trabalhava para ele.



Respondi que jamais ouvira falar desse movimento e deixaram-me voltar para casa a pé, uma distância de quase 5 quilómetros. Uma hora mais tarde um polícia bateu a minha porta, informando-me de que eu teria de voltar ao posto, para ser interrogado de novo. Era evidente que as autoridades queriam humilhar-me e assustar-me, mas obedeci e o funcionário português disse-me que eu deveria pensar seriamente na minha vida e não entrar em complicações. Após isso ordenou-me que voltasse a casa.



Passei a noite sem dormir, sabendo que jamais me deixariam em paz, que tudo o que eu fizesse seria controlado pelas autoridades, que a policia investigaria todos os meus passos e que os interrogatórios se tornariam ainda mais frequentes. A minha única esperança de salvação era a fuga, decidindo esconder-me na floresta em vez de voltar a casa, esperando poder continuar em contacto com os meus compatriotas e escapar a prisão.



Quando as autoridades souberam do meu desaparecimento, mandaram os soldados procurar-me nas florestas, mas sem resultado. A minha família e muita gente da minha região pensaram que os portugueses me tinham matado, principalmente após que as autoridades levaram tudo o que me pertencia.



Dez dias depois, quando as autoridades deixaram de me procurar, voltei calmamente a casa, contando a minha família e os outros compatriotas, ficando todos contentes com que eu não estivesse morto. Combinamos imediatamente uma reunião dos liders na floresta, para discutirmos a maneira de conquistar a nossa liberdade e expulsarmos os portugueses opressores da nossa pátria. Após uma longa e seria discussão concluímos que o povo makonde, sozinho, não seria capaz de expulsar o inimigo, decidindo então unir as nossas forças as dos outros povos de Moçambique.



Já tínhamos ouvido falar no estabelecimento do movimento de libertação em Junho de 1962, a FRELIMO, e contactamos os membros da FRELIMO na nossa região, dizendo-lhes que estávamos prontos a trabalhar com eles para a libertação do nosso país.



Como é sabido a FRELIMO declarou a insurreição geral armada contra os colonialistas portugueses em Moçambique em 25 de Setembro do ano passado. O nosso povo esperava pelo dia em que poderia levantar-se para poder lutar pela liberdade, regozijando-se com a declaração de guerra aos opressores, embora sabendo que ainda terão muito que sofrer com a repressão implacável do exercito e da policia portuguesa. Entretanto estamos determinados a lutar para alcançarmos a vitória. Deus deu-nos a vontade de vivermos livres e nada se poderá opor no caminho da nossa liberdade.

- Lázaro Kavandame.

 


domingo, 30 de julho de 2017

Joana Simeão, entrevistada pelo Jornalista Francisco Ribeiro Soares, RTP


Jornalista - Dra Joana Simeão é vice presidente do Grupo Unido de Moçambique, conhecido pela sigla  GUMO. É do conhecimento dos telespectadores a complexidade do quadro actual da vida política moçambicana. Temo-la hoje connosco para lhe perguntar precisamente qual o papel do GUMO neste momento da vida política moçambicana.

Joana - Eu não posso dar uma resposta quanto ao papel do GUMO neste momento sem fazer uma história do GUMO. Por que é que o GUMO apareceu? O GUMO apareceu há 18 meses no anterior regime e procurou encontrar  uma solução dentro do sistema que vigorava. Quer dizer, nós olhamos para a cena política, analisamos as contradições do regime e procuramos criar brechas. E essas brechas, seria encontrar aliados naqueles que nos pareceram mais liberais.
Jornalista - Concretamente

Joana - Dr. Rebello de Sousa. Quer dizer, não tenho nenhum pejo em dizer que Dr. Rebello de Sousa foi para nós, foi considerado por nós e ainda hoje pelas pessoas que eu disse, foi um dos elementos mais liberal do antigo sistema. Portanto, aliados no nosso desejo de querer fazer qualquer coisa dentro de Moçambique com vista a ajudar esses elementos a equacionar o problema da paz porque, realmente, os jovens e toda a população seja ela da metrópole como de Moçambique estava farta de guerra, 13 anos de guerra. Nós tivemos que nos apoiar, portanto, nesses elementos. Esse apoio não significa conluio com o regime. Simplesmente uma estratégia.

Jornalista- Esse apoio parte da iniciativa do Dr. Rebello de Sousa, aliás esse contacto, ou parte da vossa iniciativa?

Joana - Não. Quer dizer, nós tínhamos já organizado depois de um ano. Entretanto ele estava nas procurações, passou para Ministro do Ultramar porque nós não tínhamos nem podíamos ter contacto com o ministro Silva Cunha e pareceu-nos que podíamos tentar uma aproximação nesse sentido. Foi feito. E obtivemos dele um apoio cauteloso e discreto.

Jornalista - Que… de limitações havia até ao 25 de Abril na evolução política em Moçambique?

Joana - Primeiro, nós aparecemos apenas como  associação cívica (AC )na metrópole. Nós  queremos ser uma outra AC em Moçambique. Entretanto, nós queríamos ser um grupo de pressão. Não podíamos ser partido político, mas sim grupo de pressão com vista a criar uma corrente política nova, para fazer surgir elementos novos, dinâmicos, dentro da cena política social moçambicana, para criar hipóteses de diálogo. Isto que era possível e é o que vamos fazer.

Jornalista - E para conseguir isto, como uma associação cívica, que exemplos de actividades prosseguiam?

Joana - Primeiro nós tentamos arregimentar pessoas, divulgar o ideário. Naturalmente uma actividade semiclandestina, os ideários do GUMO do Norte a Sul, ver e falar às pessoas e estabelecemos estatutos como exigia nessa altura. Esses estatutos (aliás devo criar aqui parêntesis), esses estatutos foram até elaborados com ajuda do Dr. Almeida Santos. Eu fui ter com Dr. Almeida Santos, que eu sou amiga do Dr. Almeida Santos, devo muito a Dr. Almeida Santos e em Março nessa altura, havia atraso dos nossos colegas da Beira, eu fui ao escritório do Dr. Almeida Santos no prédio Lopes para lhe solicitar um apoio e ele mandou-me os estatutos que eu tenho a cópia.

Jornalista - Portanto a um determinado momento em que o quadro político em todo o território português se modifica. Qual é a vossa primeira reacção?

Joana - É como estão a ver, o GUMO, grupo de pressão com alto grau político mobilizou-se, posto que tínhamos uma estrutura flexível foi possível mobilizarmos e automaticamente nós aparecemos dentro de Moçambique ao lado dos democratas que até agora ainda não sabemos qual é o líder a fazer comícios que foram desde Xipamanine, Inhambane, a  Beira, Nampula até Porto Amélia. Naturalmente que o aparecimento do GUMO mobilizando populações dum momento para outro criou, da parte de indivíduos que não estão de acordo com o GUMO, manifestações e contra manifestações mas eu entendo que a democracia é justamente isso, quer dizer, dar-se a cada um a possibilidade de se exprimir e muitas vezes ela se exprime de maneira violenta.

Jornalista - Chegou-nos a tempos notícias, pelas agências noticiosas, de que pelo menos em Lourenço Marques se não estou em erro tenha havido uma manifestação organizada pelo GUMO que se teria transformado, digamos assim, numa manifestação da Frelimo. Quer nos contar rapidamente o que aconteceu…

Joana - Sim. A manifestação do Xipamanine que nós tivemos com mais de 20 mil pessoas, estavam lá os cameramen de várias agências, teles estrangeiras, naturalmente no meio da população apareceram cartazes pro Frelimo o que nós consideramos absolutamente natural. Frelimo foi até agora o único movimento que dirigiu a Luta nacionalista e portanto é e há seus partidários e eles quiseram, não conhecendo os ideários do GUMO, porque é como digo eles eram espalhados semiclandestinamente, que se quisessem manifestar mas nós consideramos absolutamente natural.

Jornalista - E qual é exactamente a vossa posição em relação a Frelimo?

Joana - Eu quero repetir o que foi e é realmente o lema do GUMO vis a vis Frelimo.  Nós consideramos, portanto, duas faces, posto que o movimento das Forças Armadas quer obter a paz. Nestas negociações só a Frelimo tem o direito de ser o interlocutor válido face à junta e hoje o Governo Provisório. No que respeita a nossa actividade futura para o destino político de Moçambique que é uma outra fase, nós entendemos explicar a Frelimo o porquê do aparecimento do GUMO e como equacionar o futuro político de Moçambique que deve ser elaborado por todos os moçambicanos sem excepção. E é nessa perspectiva e dentro dessa conjuntura que eu fui enviada há três dias precisamente 28 a Paris para tentar encontrar com o delegado da Frelimo que não vinha para o encontro comigo  mas sim para fazer parte aos festejos comemorativo do 25º aniversario do Congresso Mundial da Paz.

Jornalista - Portanto esse contacto que se integra já nessa segunda fase de pensar não propriamente nas tréguas, no eventual cessar-fogo entre a Frelimo e as Forças Armadas Portuguesas, mas já na segunda fase portanto duma estruturação política de Moçambique posterior a um cessar-fogo, se bem entendo. E desse contacto recente em Paris pode saber já alguma coisa?

Joana - Quer dizer, primeiro quero sublinhar o aspecto fraternal do nosso encontro. Isto mostra uma lição àqueles que nos tentam dividir, que o que … moçambicanismo, quer dizer panganir-se com a sua irmã independentemente das divergências que existem, divergências que aliás são conhecidas através das exigências pois nós não temos contactos directos. Eu fui lá para definir a posição do GUMO e para dizer que há problemas concretos que uma independência soleta levanta e que têm que ser resolvidos calmamente numa mesa redonda quadrada ou rectangular e que queremos saber o que a Frelimo pensa sobre muitos problemas. Por exemplo, qual vai ser o sistema económico que vai vigorar em Moçambique, qual é o sistema político que vai vigorar, qual será a posição dos grupos étnicos, não é questão de estar numa tendência tribal mas é preciso não negar as realidades do nosso país, qual será a política estrangeira, como resolver problemas financeiros e económicos, balança de pagamento deficitária, o problema do equipamento industrial, quer dizer nós queremos saber. Temos direito a saber, independentemente de ideologias porque isto o futuro concerne a todos e respeita a todos.
Jornalista - Um destes problemas não será precisamente a hipótese que se se falou há pouco em tribalismo se não estou em erro, a hipótese de num Moçambique eventualmente independente, a curto ou a médio prazo, de haver uma cisão do território em duas ou três ou quatro.
Joana - Não, ninguém. GUMO é contra o tribalismo, não quer balcanizar de Moçambique. Nós  queremos até o respeito das fronteiras políticas que estão a vigorar e que vão continuar a vigorar. Mas, para evitar exactamente, uma situação de luta interna e de caris tribal estilo Biafra teremos precisamente que ter em consideração a composição do governo futuro. Quer dizer, é necessário que as aspirações dos representantes dos grupos étnicos possam ter satisfação dentro da estrutura política do Estado. É preciso prevenir e para prevenir, nós queremos tentar dialogar.

Jornalista - Portanto, em relação a primeira fase em que a Joana Simeão me diz só a Frelimo é realmente interlocutor possível uma vez que só a Frelimo está em Armas contra as Forcas Armadas Portuguesas, na sua opinião pessoal que perspectivas há neste momento do cessar fogo em Moçambique?
Joana - Eu nada posso avançar porque não quero ter audácia de tomar a posição da Frelimo. GUMO está absolutamente ao lado, quer dizer não se pode imiscuir nestas discussões, respeitam os camaradas deles. Não estamos dentro do quadro. Será entre os emissários do governo provisório e os emissários da Frelimo, são eles os responsáveis. Eu creio qualquer afirmação hoje iria prejudicar o clima de concórdia que deve realmente presidir essas negociações.

Jornalista - Portanto, em relação a isso o GUMO vai aguardar?
Joana - Aguardar. Desejar simplesmente que se efective rapidamente possível.

Jornalista - E. por hipótese, se não chegar a uma solução de concordância de que resulte um armistício entre a Frelimo e as autoridades portuguesas, qual será o papel, nesse caso, do Grupo Unido de Moçambique?

Joana - Creio que o Grupo Unido de Moçambique vai tentar conciliar as partes, se deixarem.  Porque nós somos ai elementos secundários, fazer prevalecer, afinal , o desejo de paz que todos querem.

Jornalista - Quando me diz que são elementos secundários, está a pensar na vossa representatividade em termos de número de pessoas?

Joana - Não, não, não. Porque o problema têm vários aspectos, tem esta face, acho que … já foi claro. É preciso obter a paz; nessa fase GUMO não intervém. GUMO poderá dar conselhos de serenidade, de realmente pacifismo. Não pode, não tem direito de intervir. Não está em causa a nossa representatividade. Está em causa a nossa lucidez. Não querer aparecer como oportunistas.  Nessa fase! Agora, na fase da constituição do governo, duma estrutura política definitiva do país, nós pensamos como moçambicanos temos direito a ser consultados.  Como asiáticos nascidos em Moçambique, esse grupo também tem direito como o branco tem direito. Portanto nessa conjuntura é que nós apareceremos com direito de sermos ouvidos.

Jornalista - Precisamente por causa desse direito de todos serem ouvidos, qual é a posição do Grupo Unido de Moçambique em relação ao referendo claramente proposto pelo Presidente da República Portuguesa?

Joana - Há preâmbulos. Quer dizer. Não é a questão de o GUMO participar do Referendo é com a lei que vigora, por exemplo, a lei eleitoral. É preciso que o GUMO seja informado a tempo e hora sobre as condições de elegibilidade. Quem vai participar no GUMO. Segundo é preciso um saneamento da estrutura política e administrativa do Estado. Garantia dum meio de consultação honesta. São condições sine qua non.
Jornalista - Quer me parecer que partindo do princípio de que isso era possível de que realmente  o Grupo Unido de Moçambique chegava a conclusão de que esse referendo era possível nessas condições de isenção de honestidade aceitavam o referendo?

Joana - Sim. Eu penso que uma vez que a paz seria atingida, conseguida, bom entravamos no jogo democrático. Participaríamos na consulta. E la depende, se Frelimo aceita ou não a tal coalizão. Isso só o futuro dirá. Sabe, eu não queria. Temos que avançar realmente com muita cautela.

Jornalista - Uma primeira preocupação geral com certeza é a paz. Essa preocupação pode encontrar, de momento, solução num dialogo entre a Frelimo e as autoridades portuguesas.

Joana - Só pode ser conseguida dessa maneira a paz.

Jornalista - Se essa solução for conseguida, esperamos todos que seja…. (Joana interrompe para dizer--- Desejamos realmente com força),  jornalista continua ----se bem entendo a posição do GUMO é entrar no jogo democrático com vista a um futuro político de Moçambique que será necessariamente uma independência.

Joana - Uma independência, em diálogo com o Governo Português.

Jornalista - Portanto, uma entrada numa federação?

Joana - Não sei. Isso vai ser, quer dizer, vamos por etapas. Quer dizer, principio paz, segundo ver se é ou não possível o tal referendom, consulta popular, terceiro vamos ver o estilo de relações com o que será nessa altura a ex-metrópole. Eu gosto de etapas, para não criar as confusões. Portanto, vamos esperar.

Jornalista - Digamos, que não há uma posição irredutível em relação ao tipo futuro de relação.

Joana - GUMO defende o ponto de vista segundo o qual é preciso estudar o estilo de relações, digamos preferenciais ou privilegiadas da ex-metrópole. Mas claro isto também será o produto  de uma consultação aos moçambicanos

Jornalista - Pois é. Para terminar queria-lhe dar aqui uma boa notícia. Tenho aqui na mão um telegrama de Dar-Es-Saalam que diz: Frente de Libertação de Moçambique iniciará amanhã negociações em Lusaka com o Governo Português. Feito e anunciado em Dar-Es-Saalam por Samora Machel.

Joana - Bravo.


Transcrito por

Eusébio A. P. Gwembe

segunda-feira, 10 de julho de 2017

Joana Simeão: uma entrevista


A primeira parte: Aqui

Joana Simeão: uma entrevista a “Seara Nova”, em Março de 1974


Poderia começar por falar-me um pouco da sua infância, do ambiente onde nasceu e cresceu.


- Nampula era então, há 36 anos, um burgo simples. A minha infância foi banal, embora começasse a sentir desde muito nova que alguma coisa estava mal na sociedade em que vivia. Pelas experiências que tive, pela discriminação que sentia. Papá pôs-me a estudar numa escola particular para me subtrair a um certo número de medidas discriminatórias que existiam, na época, no ensino oficial. Havia também um conjunto de regras sociais a que nos tínhamos que submeter. As raparigas não podiam brincar com rapazes, por exemplo e isso confundia-me. Frequentemente, Papá, que era um simples “choffeur”, apanhava-me no meio dos criados e ralhava.

No meio dos criados? Tinha criados?

- Sim, toda a gente tinha. Chegou a altura de ir para o liceu, e ai uma vez mais o Papá preferiu mandar-me para um colégio. Mas a irmã recusou a minha entrada. Pela primeira vez na história do lugar aparecia uma negra a querer fazer o liceu. E o Papá, que entretanto se tornou “choffeur” do bispo, falou com este e acabou por ser por sua influência que fui admitida. Fiz assim o primeiro e o segundo anos, mas em condições psicológicas péssimas: o dia a dia, a recusa na matricula, tal e tal.
A certa altura o Papá disse: “bem, isto está mesmo tão difícil que o melhor é ires para a metrópole, mais a tua irmã. E escreveu para o Colégio de Santa Cruz, em Coimbra, para onde acabei por entrar, graças a umas facilidades que obtivemos através do Ministério do Ultramar, e onde fizemos o sétimo ano, eu e a Nina.

- A Senhora foi uma negra que pôde estudar até à universidade. Isso é raro.
- Sim, foi um cometa, o meu caso.

- É Capaz de dizer-me se essa situação ainda se mantém?

- Não. Absolutamente não.

Saberá dizer-me quantos estudantes negros acabaram o sétimo ano em 1972-73 nos diversos liceus de Moçambique?

Não sei. Mas sei que é um número superior ao que existia no meu tempo.

Sim, naturalmente, mas não tem uma ideia?
- Não sei, com franqueza. Isso mostra a minha ignorância na matéria.

E na Universidade, qual é a frequência?

- É grande. Agora formaram-se três médicos. Pode dizer: é pouco. Pois é, mas antes não havia nada disso.

Tem muitos colegas negros, a senhora?

- Eu sou a única no meu Liceu.

- E noutros liceus?
- Há, isso há.
- Numerosos?
Numerosos não?
- E na universidade, tem muitos colegas?
- Só conheço um professor de românicas.
…………………………………………..
Gostaria que falássemos um pouco de si. Importa-se?
Mais?
- Sente-se cansada?
- Diga-la, diga la o que é que quer! Mas eu depois QUERO ler o que vai escrever, sabe?
- Pode confiar, o gravador não engana e eu limitar-me-ei a pôr no papel as suas afirmações e as minhas perguntas.

- Bom… portanto a senhora regressou a Portugal em 1971. Qual era a sua situação em paris, na altura?.

Trabalhava, era secretaria na Radiotelevisão Francesa…….

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Mario Soares e Joaquım Chissano: as correspondencias (1)



 


Mario Soares e Joaquım Chissano: as correspondencias (1)
Quando Samora morreu, as relações entre Moçambique e Portugal estavam atravessando momentos azedos, com acusações mútuas. Maputo mantinha cativos alguns portugueses, e Lisboa deixava a Renamo movimentar-se livremente. Mário Soares e Joaquim Chissano recriaram um novo clima de amizade. A condição de Maputo seria, naturalmente, o cerco aos então bandidos Armados, como revela a carta de Chissano, que anexo.
1. Carta de Mário Soares a Joaquim Chissano
Lisboa, 19 de Dezembro de 1986
É esta a primeira carta que dirijo a Vossa Excelência depois da sua eleição para a Presidência da Republica Popular de Moçambique. Gostaria de começar por lhe enviar os melhores votos de Feliz Natal e Bom Ano Novo e de reafirmar a minha firme vontade de ajudar ao reforço e consolidação dos laços de amizade fraterna que unem os nossos dois povos.
Estive recentemente em visita oficial em São Tomé e Príncipe e em Cabo verde e tive então oportunidade de, nas minhas declarações públicas, reafirmar o apoio que Portugal está disposto a dar a Moçambique e a si pessoalmente, Senhor Presidente.
Reafirmo-lhe a nossa inteira disponibilidade para quaisquer diligências que Moçambique eventualmente entenda conveniente realizarmos junto dos Estados Unidos da América ou mesmo da Africa do Sul no sentido de se criar um clima de paz e estabilidade na região.
Aproveito esta ocasião para lhe falar de um assunto que por várias vezes tive oportunidade de abordar com o Presidente Samora Machel e que diz respeito à situação dos cidadãos portugueses presos na Republica Popular de Moçambique.
Espero que compreenda que não é de maneira nenhuma minha intenção intrometer-me nos assuntos internos de um Estado soberano, nem tao pouco imiscuir-me numa área que é da exclusiva competência da Justiça da Republica Popular de Moçambique.
Quero tao somente manifestar-lhe a minha maior preocupação pelas notícias que me chegam sobre a situação e as condições em que se encontram os portugueses presos em cadeias moçambicanas, cujos direitos de defesa não estariam a ser devidamente salvaguardados. Falo-lhe, concretamente, dos que se encontram detidos sem culpa formada, dos que aguardam julgamento há já algum tempo e do direito de visita e assistência dos representantes diplomáticos e consulares portugueses que não estaria a ser garantido.
Trata-se, com efeito, de acontecimentos que têm tido na opinião pública portuguesa repercussões bastante negativas e que podem, de alguma forma, vir a ensombrar excelentes relações entre os nossos dois Estados.
Neste início do seu mandato, Senhor presidente, um gesto de Vossa Excelência no sentido de eliminar quaisquer situações daquela natureza, teria certamente o grato reconhecimento e apreço do povo português.
Penso, aliás, e salvo melhor opinião, que a solução ideal para aqueles casos em que cidadãos portugueses fossem culpados – com culpa reconhecida judicialmente – de actos puníveis com prisão ou pena mais grave pela lei moçambicana, seria a sua expulsão do território moçambicano, a menos que, evidentemente, preferissem cumprir a pena na Republica Popular de Moçambique. Eliminar-se-ia, assim, uma causa constante de fricções inúteis entre nós, o que me parece estar na linha que ambos os países procuram seguir de um entendimento fraterno e sem sombras.
2. Carta de Joaquim Chissano a Mario Soares
Maputo, 8 de julho de 1987
Caro Senhor Presidente Mário Soares
Permita-me, antes de mais, apresentar-lhe os meus mais calorosos cumprimentos.
Os ministros dos Negócios Estrangeiros da Republica de Cabo verde, da Guiné-Bissau, da Republica Popular de Moçambique, da Republica Democrática de São Tomé e Príncipe e das Relações Exteriores da Republica Popular de Angola, deslocaram-se a Portugal em missão oficial dos Cinco países africanos de língua oficial portuguesa. A decisão da sua visita a Portugal foi tomada na Sétima Conferência Cimeira dos Chefes de Estado de Angola, Cabo verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, realizada em Maputo, de 21 a 22 de Maio de 1987.
Nesta oportunidade gostaria de reafirmar a Vossa Excelência a vontade comum dos “Cinco” de desenvolver e aprofundar com Portugal relações bilaterais de amizade e de cooperação.
Este sentimento outrora manifestado, por diversas vezes, quer individualmente quer em conjunto, pelos “Cinco” países, tem conhecido na pratica dificuldades de concretização, devido à cumplicidade e conveniência de certos círculos, em Portugal, com os bandidos armados que actuam contra Angola e Moçambique.
Estes bandidos armados, como é do conhecimento de Vossa Excelência, semeiam a morte e a destruição em Angola e Moçambique prosseguindo a politica de Pretoria de promover uma guerra generalizada na Africa Austral. Esta actividade ganha eco em Portugal através do acolhimento e difusão de propaganda nociva a Angola e Moçambique e, em detrimento do Estado português.
Os cinco países africanos de língua oficial portuguesa estão convencidos de que Portugal pode jogar um papel importante na solução do conflito na Africa Austral quer proibindo as actividades hostis a Angola e Moçambique que têm lugar a partir do seu território quer através do esclarecimento e sensibilização dos demais países europeus sobre a realidade na Africa Austral.
Os ministros dos Negócios Estrangeiros/Relações Exteriores estão por nós devidamente mandatados e instruídos para informar as autoridades portuguesas e, em particular Vossa Excelência, das preocupações dos “CINCO”.
Ao terminar, gostaria de exprimir-vos em nome do Governo moçambicano a inteira disponibilidade da Republica Popular de Moçambique e ainda de Angola, cabo Verde, Guine Bissau e São Tomé e Príncipe de desenvolver com Portugal relações bilaterais amistosas, cordiais e de cooperação multifacetada.
Estou certo de que sobre estas os Cinco Ministros terão oportunidade de trocar opiniões com as autoridades portuguesas e particularmente com Sua Excelência o Primeiro-ministro.
Queira, Excelência, aceitar os protestos da minha mais Alta Consideração.
E os meus melhores votos
Joaquim Alberto Chissano
Presidente da Republica Popular de Moçambique